A moda, como qualquer atividade criativa, bebe de várias fontes de inspiração; uma criação genial não surge do nada – sempre há pesquisa em torno de referências relevantes que façam sentido no contexto proposto. As coleções de grandes marcas sempre giram em torno de temas, que guiam as percepções estéticas que serão aplicadas aos produtos. Nesse grande mar de referências, não é raro que designers escolham usar elementos de diferentes culturas como forma de celebrar estes grupos. Nem sempre isso funciona bem, e pode dar muito errado, justamente pela linguagem escolhida para falar daquilo. É quando se cruza a linha tênue entre homenagem e apropriação cultural.
Apropriação cultural nada mais é do que adotar elementos de outras culturas fora de seu contexto original, geralmente dando a elas uma interpretação eurocêntrica, os tornando adequados para serem vendidos como produto – mais um dos grandes engodos do capitalismo. Tomar símbolos religiosos, desenhos e grafismos de determinada etnia, signos políticos e sociais de algum grupo (normalmente não-branco), e esvaziá-los de significado para transformá-los em algo puramente estético – isso definitivamente é apropriação cultural.
Não faltam casos para exemplificar esse tipo de coisa no universo da moda. Recentemente duas marcas internacionais importantes foram acusadas de apropriação envolvendo a cultura popular do nordeste brasileiro. Uma delas foi a italiana Prada, que em sua coleção Pre Fall 2020 lançou uma sandália de couro trançado, muito semelhante àquelas produzidas e vendidas em feiras por artesãos nordestinos. A versão grifada da sandália custava nada menos que 650 euros (na época cerca de 4 mil reais). A marca foi acusada de plágio e apropriação cultural, e cobranças de posicionamento não faltaram – muitas delas mencionando a desvalorização do trabalho do artesão, que só foi regulamentado no país como profissão em 2015.
Outra situação polêmica envolveu a marca inglesa Alexander McQueen, cuja coleção contava com peças estampadas com desenhos que lembravam muito as xilogravuras dos cordéis nordestinos. Brasileiros atentos chegaram a pedir um posicionamento de Sarah Burton, diretora criativa da marca, mas sem sucesso. É claro que os casos de apropriação cultural não ficam só no âmbito das grandes grifes de moda, mas quando acontece nestes lugares a repercussão é muito maior.
Mas então qual é a forma correta de celebrar outras culturas em produtos de moda? Bom, não existe exatamente uma fórmula – o interessante seria que os designers se guiassem pelo bom senso. Existem exemplos aqui mesmo no Brasil, de criadores que fazem isso de forma ética e respeitosa, dando valor à cultura de origem dos elementos que pretendem usar. O estilista mineiro Ronaldo Fraga é uma unanimidade nesse sentido. Em uma de suas coleções mais recentes, ele quis homenagear a cultura da Paraíba – em especial o saber-fazer da renda renascença, tradicional da região.
Inspirado no trabalho do artista plástico Flávio Tavares, e motivado por uma demanda trazida pelas próprias rendeiras do Cariri de fazer uma coleção com um designer, Fraga idealizou uma oficina onde estas mulheres dividiram seu conhecimento, multiplicando suas histórias. Para o estilista, o caminho do sucesso é o encontro e a criação conjunta.
Não é muito difícil perfurar as barreiras da homenagem e cair na apropriação cultural. Como já mencionei, é uma questão de linguagem – a diferença passa por aí. Se há uma maneira de homenagear sem se apropriar, acredito que ela comece pelo respeito à cultura alheia, pelo entendimento dos signos e, por fim, pela valorização do trabalho e do saber popular.
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