Então é natal!

Eu tenho certeza absoluta de que você leu esse título cantando. Acertei? Se você, assim como eu, ainda pensa que está em 2020 – o ano que não aconteceu – pasme: O Natal é em poucos dias. E isso me traz uma série de reflexões.

A primeira é que este texto está sendo escrito apenas por conta de uma questão geográfica. Ora, nascemos em um país cuja maioria da população é cristã. Logo, é compreensível que a maior parte dos conterrâneos – mesmo aquelas pessoas que não professam o cristianismo – sintam os efeitos culturais da proximidade do Natal.

Imagine como é esta mesma data nos países onde o Islamismo é a religião culturalmente predominante? Ou ainda na Índia, onde a maioria esmagadora dos mais de um bilhão de pessoas professa várias expressões de fé? Se para nós o Natal é “a” festa de fim de ano, talvez algumas dessas pessoas sequer saiba do que se trata. 

E por falar em fim de ano, quando entra dezembro, particularmente para mim, começa aquele sentimento de fim de ciclo. Nunca gostei de iniciar nenhum projeto novo nesse mês. É um mês de “acabativas” e não de iniciativas. Parece a sexta-feira do ano, alguém já disse. No Natal, estamos bocejando, dormimos no interregno até o ano novo, para despertar no dia dois de janeiro. E não é um despertar comum: é despertar para um novo ciclo.

Contudo, nem todos os países vão comemorar o ano novo na mesma data que nós. Israel, Coréia do Norte e Etiópia, por exemplo, não seguem o Calendário Gregoriano. A China, apesar de utilizar o mesmo calendário que nós, comemora o ano novo em outra data. Se o mercado força a utilização do gregoriano, a cultura ainda resiste ao utilizar o calendário próprio. Em 2022, o ano novo chinês será celebrado em 1º de fevereiro. Apenas nesse dia encerrará a “sexta-feira do ano” para o povo chinês.

Percebe o quanto isso é curioso e assustador?

Curioso porque revela a fragilidade da nossa cultura, do nosso ethos, da nossa moral e das nossas verdades. Uma simples linha imaginária, separando dois grãos de areia do nosso planeta, pode determinar a forma como pensamos e experimentamos o mundo ao redor. Isso dá um ar tão acidental, e ao mesmo tempo, artificial e inventado para algo que é tão determinante em nós mesmos.

Assustador porque, apesar de calcados em fragilidades, a cultura que nos constrói é geradora de sentido. E muitas pessoas que percebem essa fragilidade, ainda que inconscientemente, para não se perderem, defendem com afinco valores que ela sequer sabe se são realmente seus. Tornam-se prisioneiras de mundos imaginários, que não lhes pertence, no qual sempre serão peões em um tabuleiro sem regras específicas.

Marshal McLuhan previu a Aldeia Global. Este seria um espaço em que, mediados pela tecnologia, a humanidade anularia as distâncias e se tornaria um povo só. É cedo para dizer que McLuhan estava certo ou errado, afinal processos culturais levam gerações para se concretizarem. No entanto, podemos dizer sem erros que estamos longe. Longe, principalmente, porque ainda não estamos conscientes dos processos que nos moldam como gente.

Esta inconsciência fica evidente quando, ainda hoje, queremos defender a ideia de que ideais políticos não moldam a forma como transmitimos um conteúdo. Quando ainda advogamos que as questões de gênero, raça e classe social não afetam a maneira como nós codificamos. Quando ainda queremos defender uma percepção equivocada de meritocracia, que desconsidera que nem todas as pessoas partem do mesmo ponto.

Nós, da área de tecnologia, deveríamos despertar o quanto antes para estas questões. Nós criamos a mídia que liga o mundo. E isso ficou mais evidente ainda nos últimos anos. A Tecnologia não só manteve negócios funcionando e pessoas se comunicando durante a pandemia. A tecnologia elegeu presidentes, conduziu a opinião pública, construiu mitos e demônios. E nós, direta ou indiretamente, somos responsáveis por isso.

Se a forma que enxergamos e vivenciamos o mundo, molda aquilo que somos e produzimos, que mundo estamos produzindo para a próxima geração?

O Natal fala sobre o nascimento de uma criança, a esperança de salvação para o mundo (do ponto de vista cristão, claro). Uma criança que foi excluída antes mesmo de nascer, uma criança migrante, refugiada, filha de mãe solteira, em uma família pobre em um país sob domínio de uma potência estrangeira. Se essa criança nascesse hoje, a tecnologia que desenvolvemos seria acessível a ela?

Um Feliz Natal para todos vocês! 

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