Software obsoleto e antropomorfismo?

Antropomorfismo é um dos traços mais presentes da nossa cultura. Como descrevemos o mundo a partir do nosso ponto de vista, é normal atribuir a objetos e seres não-humanos, características e comportamentos tão nossos. Além de ajudar a entender o nosso próprio mundo, esta projeção tem mais duas reações possíveis: A primeira sendo a empatia (já deu um pouquinho a mais de ração para o seu animal só por conta da forma como ele te olhou?) e a segunda é a compreensão de quem nós somos. Os mitos gregos são recheados de antropomorfismo, que são utilizados até hoje como auxílio na compreensão da natureza humana. 

Respeitadas as devidas limitações, também construímos pontes antropomórficas entre nós e a tecnologia. Você já deve ter chamado seu computador de temperamental, quando ele não quis ligar. Ou alegou que as impressoras sabem quando estamos com pressa; porque é aí que elas travam. Aliás, “querer” é um verbo que não poderia ser atribuído às máquinas. Pelo menos não ainda. Além dessa última, outra característica que também julgo inapropriada a tecnologia é o envelhecimento. Permita-me explicar.

Nós até podemos falar que hardware envelhece, por conta do desgaste gradual dos componentes e afins. Mas será que poderíamos falar o mesmo sobre Software? De maneira mais ampla, software, muito mais do que código binário, é a representação de um algoritmo que visa resolver problemas, automatizando processos. Um sistema de vendas, por exemplo. Passam-se os anos, o processo de venda pouco foi alterado. Você até tem obrigações fiscais e processos específicos de área, que mudam com o tempo. Mas as personas continuam as mesmas e os papéis que elas desempenham também. 

Dizemos sempre que software é a parte que a gente “xinga” porque ele não é materializável. Software é totalmente abstrato, é um algoritmo, é uma ideia. E o conceito de envelhecimento não serve para ideias. Ideias não envelhecem; elas se tornam obsoletas quando novas ideias nascem, e uma vez sedimentadas, substituem as anteriores. Podemos dizer, apenas metaforicamente, que elas estão gastas e mortas. Mas nunca de maneira absoluta e concreta. No entanto, basta comparar a última versão do Windows com a sua versão 95 para perceber que eles envelhecem sim. Como desfazer essa aparente contradição?

Se por um lado o software não é imune aos efeitos do tempo, o outro binômio dessa equação é: a pessoa que desenvolve o software. E o efeito colateral do tempo é justamente a experiência. Aquele conhecimento que nos faz sentir um embaraço ao ler o código que escrevemos há seis meses. Sinal de que evoluímos, aprendemos, pelas pedras do caminho, a quando usar e renunciar as boas práticas. Mas esse efeito colateral não se replica todas as vezes.

E agora voltamos ao início, quando falamos de antropomorfismo. Em casos em que a projeção do Eu para o software é exacerbada, temos como resultado pessoas que tratam a tecnologia A ou B como uma religião; uma extensão de si mesmas. Nesse estágio, uma crítica ao sistema é uma crítica a pessoa; a obsolescência do software é projetada sobre a pessoa. A documentação vira um livro sagrado e a pessoa, o seu evangelista. 

E assim como no mainstream religioso, os seus fiéis são fidelizados através do medo. Medo de que o mundo descubra a sua obsolescência, medo de perder o espaço no mercado apenas por não estar atualizado com a última tecnologia. Medo de ter de aprender tudo novo de novo. Medo de recomeçar e perder tudo o que construiu até aqui. Medo de envelhecer. Medo da vida. Medo da morte.

Como superar essa simbiose tecnológica? Apenas o tempo. E como é linda a ironia que reside na percepção de que não é, afinal, o tempo que nos torna obsoletos. A velhice nos renova! É a própria vida que nos faz perceber que a documentação não é nosso livro sagrado e uma tecnologia não é um dogma. São ferramentas de trabalho! E se uma linguagem sexagenária ou balzaquiana é a melhor solução para um problema, por que não a utilizar? Quais são os critérios objetivos de uma decisão tecnológica? Só as pedras no caminho é que podem nos ensinar.

Quero concluir construindo uma breve relação entre o que conversamos hoje e o Mito da Caverna, de Platão: Software é apenas sombra na parede. A decisão de sair da caverna é toda sua.

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