De que adianta automatizar o mundo inteiro?

Por: - 17 de novembro de 2021

Se você acompanha esta coluna com frequência, deve ter percebido que tenho tido alguns dias de silêncio. Eu gostaria muito de dizer que é por conta de uma excessiva carga de trabalho, mas não posso. Desde o fim de outubro tenho lidado com problemas de saúde na minha família. Minha esposa ainda está em processo de recuperação e minha mãe… Bom, segundo o próprio médico que a atendeu, se ela tivesse demorado uns 30 minutos a mais para chegar ao hospital, muito provavelmente não estaria mais entre nós. E eu estaria órfão. E é sobre isso que eu quero conversar com vocês hoje.

Longe de mim querer pesar o clima, nesta coluna que você acompanha com café – com sorte, até uma cervejinha – e reflete comigo a respeito de tecnologia. Ao invés de falar de morte, quero falar de vida. Presente e futura. Isto porque, na maior parte do tempo, não nos atentamos para o quão frágil e efêmera é a vida. O poeta bíblico, do niilista livro de Jó (me perdoem o anacronismo), já dizia que a vida é como uma flor, que nasce frondosa, mas que logo murcha e é carregada pelo vento. Perceber que a vida da minha mãe poderia ter encontrado o seu termo, fez com que eu me recordasse dessa reflexão é pensar na minha vida. E pensar na nossa vida como pessoas de tecnologia.

Durante o último ano, nós da área de tecnologia temos virado noite para manter a infraestrutura tecnológica do mundo inteiro. O Pix é uma maravilha, não é mesmo? Já imaginou as inúmeras horas que nós passamos, atrás de um teclado e monitor, de coluna arqueada, discutindo com os cards no board, tentando diminuir custos, brigando por qualidade? Tudo isso para que você possa transferir um centavo, acompanhado de uma cantada matadora. O mesmo eu poderia dizer das compras nas lojas on-line, dos marketplaces, dos aplicativos de entrega e de tantos outros que viabilizaram a economia durante a pandemia.

E não são apenas horas de trabalho. Para trabalhar também temos as horas de estudos. E quando a entrega da GMUD (ou “gestão de mudança”, quando é necessária uma cerimônia para entrega de código em produção) ocorre durante a madrugada, quando é que vamos estudar? Durante a novela, o jornal; a maratona no seu streaming preferido é a chance perfeita pra você escrever uma prova de conceito. Enquanto isso, sua esposa repousa na poltrona ao lado, zapeando as redes sociais; sua mãe, a quilômetros de distância, assiste novela e seu filho brinca na sala, descobrindo o mundo ao seu redor. E você, longe da vida.

Não quero, de maneira alguma, fazer uma ode ao ócio – embora às vezes eu pense que seja preciso – ou desestimular as suas horas de estudo. Eu acredito que a gente precisa aproveitar as forças que temos hoje para garantir o nosso futuro. O problema é quando isso se torna uma compulsão que te remove da vida. E com todo a respeito a fé de todas pessoas que me leem, me faço representar nas palavras de Vinícius de Moraes:

A vida é pra valer. Não se engane, não. É uma só

Duas mesmo que é bom ninguém vai me dizer que tem, sem provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do Céu, assinado embaixo: Deus. E com firma reconhecida.

Às vezes tenho a impressão que nós fomos tão mal acostumados pelos jogos, e outros materiais de ficção, que nos esquecemos dessa verdade. No fundo, lá no fundo, reside uma falsa percepção de que há um save e que, se tudo der errado, poderemos voltar e reescrever a história. Isso não existe! É preciso viver; é preciso viver hoje. 

E eu sei que esse é um convite desafiador. Nos últimos anos, o desmonte do Estado, a crise institucional e administrativa do país só tornaram a vida ainda mais difícil – e cara. Viver, ao invés de direito, hoje quase beira a um privilégio…

Um professor meu, muito ativista e engajado em movimentos sociais, uma vez disse em uma palestra que não dá pra sermos viscerais o tempo todo. Nós precisamos de um pouco de alienação para poder suportar a vida. E à luz desse aforismo, eu pergunto: você viu a lua ontem? Qual foi a última vez que você se sentou com alguém para falar apenas de coisas boas? Trocar histórias? Elogiar alguém? Lembra quando você assistia aos filmes da sessão da tarde, e tinha aquele pai (ou mãe) ausente? Lembra da promessa que você fez de nunca ser esse pai ou mãe? Você está cumprindo esse pacto que a sua versão-infantil fez há alguns anos?

Nosso trabalho é muito importante. Como tantos outros no país. Mas você não pode se esquecer – jamais – das pessoas que você ama. A vida acontece hoje! E é por causa dela que nós investimos tanta vida em bits e bytes. É por causa de um mundo melhor que nós compartilhamos conhecimento. E isso não pode ser TUDO na nossa vida. Apenas uma parte. Em busca de equilíbrio.

Me despeço parafraseando a “fonte ‘q’”: De que adianta automatizar o mundo inteiro e perder a nossa vida?

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