Como quase todo mundo de tecnologia, eu adoro ficção científica. Para muito além do estereótipo, me encanta muito esse poder profético que o gênero possui. A série Star Trek, por exemplo, anteviu (ou causou) o surgimento de vários gadgets que utilizamos hoje. Tablets, por exemplo, já apareciam nas telas da TV, antes mesmo da popularização dos computadores pessoais. O ônibus espacial Enterprise e a linha de celulares startac, da Motorola, foram inspirados em objetos da série!
Para alcançar esse poder profético, o oráculo precisa estar em profunda relação com a sociedade que o cerca, ao mesmo tempo que permite desligar-se das amarras e limites impostos por essa mesma sociedade. Em outras palavras, a pessoa que escreve ficção científica deve, a partir do seu mundo, sonhar com um outro porvir; um mundo ainda não criado. Foi assim que Júlio Verne “descreveu” a viagem à lua, cem anos antes da humanidade deixar sua pegada no nosso satélite natural.
Esse gosto pelos “dias que virão” não é novidade dos últimos dois séculos. Talvez você não saiba, mas apesar de falar semanalmente sobre tecnologia, sou bacharel em teologia. E nas cadeiras da faculdade acabei conhecendo um gênero literário chamado “apocalíptica”. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que a ficção científica e a apocalíptica tem muito em comum.
Não estou falando de naves espaciais ou monstros abissais. Esses são apenas chamarizes para que o público vá ao cinema (ou assuste crianças com o texto bíblico). O foco principal de ambos os gêneros é a condição humana. O texto apocalíptico é composto de uma análise crítica do mundo atual, mas construída de forma alegórica e projetada para o futuro. Os demônios, cavaleiros, serpentes são símbolos utilizados, para retratar a experiência vivida pelo povo que a escreve. É por isso que o “quando ouvires falar de guerras e rumores de guerras” é tão atual. O fim do mundo é todo dia – hoje mesmo.
De igual maneira é a ficção científica. Se pegarmos alguns filmes dos anos 80, 90, que visão divertida temos do futuro. As cenas passadas no futuro de Martin McFly em “De volta para o futuro” são extraordinárias! Mostra a sociedade do futuro, mas com problemas do seu presente. Eu não consigo deixar de pensar nas gravatas duplas do McFly do futuro. Um homem fraco, que goza de pouco ou nenhum prestígio no trabalho e na família, mas que tenta compensar sua imagem ostentando não um, mas dois símbolos de poder, amarrados à garganta. Steven Spielberg não é um gênio do cinema à toa.
Com os anos 2000 e o atentado às Torres Gêmeas em Nova Iorque, as “altas confusões” do futuro foram trocadas por outros temas. A revista com os resultados dos jogos foi substituída pela guerra contra os alienígenas. E mesmo essa ameaça interplanetária diz muito sobre – e somente sobre – a condição humana. Diz especialmente sobre a nossa capacidade de desumanizar o diferente, de tratá-lo como ameaça. E especialmente que o herói é aquele que mata e destrói o “invasor”.
Tudo bem. Mas e o que isso tem a ver com tecnologia?
Absolutamente tudo.
Na última semana assistimos, com tristeza e pavor, a tomada do Afeganistão pelo Talibã. É doloroso demais se colocar no lugar das pessoas que, no seu último sonho de liberdade, ao invés da vida, encontraram a morte em seu mergulho final. Enquanto isso, nas duas semanas que antecederam esses tristes fatos, assistimos homens, gastando bilhões de dólares, para ter cinco minutos no espaço; disputando veladamente quem voou mais alto.
Não é necessário dizer quão egoísta e pequena é essa tentativa de “fuga do planeta”, disfarçada de “avanço científico”. Não é possível chamar de “avanço científico” uma tecnologia que está completamente alheia às necessidades humanas mais essenciais: de saber que haverá uma próxima refeição, de poder se expressar, de poder ter ideias, de poder trabalhar pelo próprio sustento. Não há verdadeiro avanço científico, quando a sociedade não avança em conjunto.
A construção da tecnologia passa pela construção do amanhã. Assim como os escritores de scy-fi, a pessoa que trabalha com tecnologia tem a obrigação ética de estar em profundo contato com o mundo que a rodeia, questionando a relevância daquilo que produz. Também faz parte desse compromisso, estabelecer um exercício analítico, crítico e empático com os milhões de pessoas que habitam o mesmo “pálido ponto azul” em que residimos. Só assim as “soluções” que dizemos construir, poderão viabilizar a “primaveras” de outros povos oprimidos. Somente assim o potencial libertador e empoderador, que há na tecnologia, será finalmente despertado.
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