Desde quando “parecer mulherzinha” virou algo pejorativo?

 

De punição com as próprias mãos em cárcere privado até a personalidade feminina que vira piada: como foi que demonizamos o que não é masculino?

 

Tenta resgatar na sua memória: você já deve ter ouvido alguém falando que quando um homem, julgado e condenado pelo crime de estupro, ao ir pra cadeira, “vai virar mulherzinha dos presos”. É um clássico do sistema carcerário brasileiro, e se você nunca ouviu alguém dizer isso, sim, é real: no Amazonas, o caso de Heberson Lima de Oliveira, de 37 anos, pode ser visto como a morte de uma pessoa que permanece viva. Ele foi preso injustamente por um crime de estupro que não cometeu, e na cela, foi estuprado por mais de 60 detentos, contraindo o vírus do HIV. Em liberdade, luta com – não na – a justiça pela reparação do mínimo de dignidade que ainda lhe resta.  Mas esse texto, mesmo solidário com o caso de Heberson, preso injustamente, não é para falar sobre o sistema prisional brasileiro (por mais que, claramente, poderia): a reflexão é sobre o incômodo da feminilidade.

Heberson era inocente, mas vamos aos casos onde realmente o estuprador cometeu o crime, já que segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um estupro é cometido no Brasil a cada 8 minutos: o medo do cidadão que acabou de ser preso não é o tempo que ele passará na cela, nem tampouco as condições sub-humanas que enfrentará no cubículo lotado, mas sim o que os presos “farão com ele” lá dentro. Perceba comigo: o julgamento e a prisão são menos amedrontadores quando o detido sabe que irá sofrer na pele o crime que cometeu – e se amedronta por isso, porque “ser preso tudo bem, mas virar mulherzinha na cadeia, aí já é demais”. Onde foi que aprendemos a discursar isso? Porque transformamos o feminino em sombra? O “parecer mulher” em castigo? Quando isso começou? E o mais importante: quando isso vai acabar?

Vamos nos colocar no lugar da vítima que, ao saber que ao menos a justiça contra o estuprador foi feita, ouve que “pode ficar tranquila, pois lá dentro ele vai sofrer o que fez com você”. Pensa bem: ferida física e emocionalmente, ela tem a constatação de que o que ela sofreu é realmente ruim, porque o criminoso sofrerá o mesmo que ela, logo, a punição vem na mesma moeda. É a validação de que o que fizeram com o corpo, mente e vida dela, de ruim, será a chave de tortura pela qual ele também pagará. É bizarro.

Saindo do contexto prisional brasileiro, a gente chega em um outro reduto repleto de preconceitos – dentro e fora da comunidade: homens que performam feminilidade. Mulheres que performam masculinidade.

O homem, na maioria das vezes gay, é cobrado da virilidade: “pode até ser gay, mas poxa, ser viado é demais”. Na tradução: o homem gay é mais másculo, viril, não “aparenta tanto ser gay”. Já o viado é “escandaloso demais, é muito bicha, viadinho”. Mesma coisa a mulher que performa uma masculinidade, na maioria das vezes lésbica: é “caminhoneira, sapatão brava” e afins. Perceba comigo: a pessoa em si necessariamente não é o problema, mas ela se torna um pelo que ela representa – mas sobretudo pelo que ela deixa de representar, desrespeitando o que é tido como “comum”.

Ou seja: o homem que parece mulher é “uma aberração”. Mas a mulher que não performa essa feminilidade que lhe foi endereçada lá na maternidade também é quase uma herege, pois o ponto está aqui: a quebra daquilo que foi posto como normalizado.

No fim, a feminilidade, bem como as normas impostas pelo binarismo, pela heteronormatividade e pelo “dito que é maioria” não passa de um aparelhamento social usado como instrumento e ferramenta. Mas ainda bem que a gente não liga em quebrar algumas regras. 

 

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