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Uma investigação exclusiva da Folha de S. Paulo trouxe à tona detalhes inéditos sobre a atuação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), na condução do controverso inquérito das fake news. O assunto repercute na política nacional e já mobiliza lideranças políticas que querem o impeachment do ministro.
Segundo a apuração da Folha, Moraes teria utilizado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio de seu setor de combate à desinformação, como um braço investigativo para reunir provas contra aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, em um movimento que se deu fora dos ritos oficiais.
O material obtido pela Folha inclui mais de 6 gigabytes de mensagens trocadas via WhatsApp entre assessores de Moraes e integrantes de sua equipe tanto no STF quanto no TSE. As mensagens revelam como o gabinete de Moraes, por meio de seu principal assessor, o juiz instrutor Airton Vieira, solicitava a produção de relatórios ao TSE de maneira informal.
Esses relatórios foram usados para embasar decisões judiciais contra bolsonaristas durante e após as eleições de 2022.
A rede de comunicação informal
De acordo com a Folha de S. Paulo, as mensagens demonstram que o setor de combate à desinformação do TSE, à época presidido por Moraes, foi instrumentalizado para produzir relatórios que posteriormente eram utilizados no STF.
A comunicação se dava principalmente entre Airton Vieira e Eduardo Tagliaferro, chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE até maio de 2023. Em diversas ocasiões, Vieira solicitou a Tagliaferro, via WhatsApp, que produzisse relatórios específicos sobre as atividades de figuras proeminentes ligadas ao bolsonarismo, como o jornalista Rodrigo Constantino e Paulo Figueiredo, ex-apresentador da Jovem Pan e neto do ex-presidente João Figueiredo.
Uma dessas trocas ocorreu no dia 28 de dezembro de 2022, apenas quatro dias antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de o TSE já não ter mais motivos oficiais para atuar, Vieira perguntou a Tagliaferro se ele poderia falar sobre o caso de Constantino.
Após a confirmação de Tagliaferro, os dois discutiram a elaboração de um relatório a partir de postagens do jornalista nas redes sociais, bem como de Paulo Figueiredo. Em um áudio enviado às 23h59 daquele dia, Vieira afirmou que a solicitação partiu diretamente de Moraes, que estaria insatisfeito com a demora na produção do relatório. “Quem mandou isso aí, exatamente agora, foi o ministro e mandou dizendo: vocês querem que eu faça o laudo? Ele tá assim, ele cismou com isso aí”, disse Vieira.
Pressão e alterações nos relatórios
As mensagens trocadas evidenciam a pressão exercida pelo gabinete de Moraes para a produção e alteração dos relatórios. No caso de Constantino, após receber uma primeira versão do documento, Vieira enviou prints de novas postagens feitas pelo jornalista e exigiu que o relatório fosse revisado para incluir essas manifestações.
Em resposta, Tagliaferro afirmou que o conteúdo original já seria suficiente, mas que faria as alterações solicitadas devido à insistência de Moraes. “Concordo com você, Eduardo. Se for ficar procurando [postagens], vai encontrar, evidente. Mas como você disse, o que já tem é suficiente. Mas não adianta, ele [Moraes] cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”, comentou Vieira.
Dias depois, em 1º de janeiro de 2023, Vieira enviou a Tagliaferro cópias de duas decisões sigilosas de Moraes, tomadas no âmbito do inquérito das fake news e baseadas nos relatórios produzidos informalmente. As decisões ordenavam a quebra de sigilo bancário de Rodrigo Constantino e Paulo Figueiredo, além do cancelamento de seus passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimentos na Polícia Federal.
Em outra ocasião, em 22 de novembro de 2022, Vieira enviou prints de uma conversa com Moraes em um grupo de WhatsApp chamado “Inquéritos”. A mensagem mostrava Moraes enviando postagens de Constantino e pedindo que o TSE analisasse as mensagens para avaliar a possibilidade de bloqueio das contas e aplicação de multa.
Tagliaferro, após receber a solicitação, discutiu com Vieira se as decisões seriam tomadas pelo TSE ou pelo STF, acabando por decidir que tudo seria feito pelo Supremo. “Eduardo, bloqueio e multa pelo STF (Rodrigo Constantino). Capriche no relatório, por favor. Rsrsrs. Aí, com ofício, via e-mail. Obrigado”, instruiu Vieira.
Preocupações e irregularidades
A atuação informal entre o gabinete de Moraes e o TSE gerou preocupações entre os próprios assessores do ministro. Em uma conversa no dia 4 de dezembro de 2022, Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE, questionou se Airton Vieira estava repassando informações a Tagliaferro de forma privada.
Ao confirmar que sim, Vargas brincou sobre a possibilidade de nulidade das provas devido ao método utilizado, o que foi reforçado por Tagliaferro, que expressou apreensão com o modelo de envio de relatórios. “Temos que tomar cuidado com essas coisas saindo pelo TSE. É seu nome”, alertou Tagliaferro, sugerindo criar um e-mail para formalizar as denúncias.
Ainda conforme a apuração da Folha de S. Paulo, o inquérito das fake news, que foi aberto em março de 2019 por ordem do ministro Dias Toffoli, teve como objetivo inicial investigar ameaças e notícias fraudulentas veiculadas na internet que visavam o STF e seus ministros. Desde então, o inquérito se tornou uma ferramenta controversa, com decisões sendo tomadas por Moraes sem a participação prévia do Ministério Público ou da Polícia Federal.
Procurado pela Folha, o gabinete de Moraes afirmou que “todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”. Eduardo Tagliaferro, por sua vez, declarou que cumpriu todas as ordens que lhe foram dadas e que não se recorda de ter cometido qualquer ilegalidade.
Implicações e reações
A revelação do uso informal da Justiça Eleitoral para investigar bolsonaristas em inquéritos no STF levanta questionamentos sobre a legitimidade e a legalidade das provas obtidas. A atuação de Moraes à frente do TSE e do STF tem sido objeto de intensas críticas e elogios. Em abril de 2023, Elon Musk, CEO do Twitter, criticou publicamente as decisões de Moraes, em um dos momentos mais tensos para o ministro.
Além disso, uma comissão do Congresso dos Estados Unidos publicou uma série de decisões sigilosas de Moraes, relacionadas à suspensão ou remoção de perfis nas redes sociais.
A Folha revelou em abril que o setor de combate à desinformação do TSE havia ajudado a robustecer inquéritos no STF, mas as novas informações mostram que esses relatórios eram, em muitos casos, produzidos a pedido direto do gabinete de Moraes, algo que era até então desconhecido.
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