Como a inteligência artificial está desvendando textos antigos e reescrevendo a história

A aplicação de IA na decifração de textos antigos recupera fragmentos perdidos e transforma a forma como entendemos a história.

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    Imagine textos milenares que resistiram ao tempo, escondidos em rolos de papiro queimados, tábuas de argila desintegradas ou até nas camadas de pergaminhos medievais reutilizados. Até recentemente, muitos desses documentos eram considerados ilegíveis e, portanto, inacessíveis para os historiadores. Contudo, o avanço da inteligência artificial (IA) está mudando esse cenário, permitindo que fragmentos do passado finalmente contem suas histórias.

    Em outubro de 2023, um marco foi alcançado na arqueologia digital. Federica Nicolardi, especialista em papirologia, recebeu uma imagem transformadora: um fragmento de um papiro carbonizado na erupção do Monte Vesúvio em 79 d.C., agora revelando linhas de texto grego perfeitamente legíveis. Esse feito foi resultado do Desafio Vesúvio, uma iniciativa que usa IA para “ler o ilegível”. Para Nicolardi, isso não é apenas um avanço técnico, mas um divisor de águas para sua área. “Estou vivendo um momento histórico para meu campo”, disse ela, ao reconhecer o impacto do uso de redes neurais profundas nesse processo.

    Redes neurais e o renascimento de textos antigos

    As redes neurais têm revolucionado áreas como tradução automática e reconhecimento de imagem, mas seu impacto na reconstrução de textos antigos é particularmente fascinante. Modelos como redes neurais convolucionais (CNNs) e redes neurais recorrentes (RNNs) estão sendo usados para preencher lacunas em textos incompletos e decifrar línguas quase extintas. Um exemplo notável é o modelo Ithaca, que não apenas preenche lacunas em textos gregos antigos, mas também sugere datas e locais de origem com precisão superior à de especialistas humanos.

    Os resultados são impressionantes: ao combinar IA e o conhecimento humano, a precisão na reconstrução de textos saltou de 25% para 72%. Isso reforça que a IA não substitui o pesquisador, mas atua como um parceiro poderoso, ampliando a capacidade humana de explorar e interpretar fontes históricas.

    Do Vesúvio à Coreia: a aplicação da IA em textos históricos

    Enquanto pesquisadores europeus se concentram em textos clássicos, na Coreia do Sul, a IA está sendo usada para traduzir registros reais detalhados que abrangem 500 anos. Esses textos, escritos em Hanja, um sistema baseado em caracteres chineses, são praticamente ilegíveis para a maioria dos estudiosos modernos. Com a ajuda de modelos de tradução automática baseados em transformadores, como o TimeSformer, foi possível produzir traduções mais precisas e legíveis do que as versões manuais.

    Já na Grécia, esforços estão sendo feitos para decifrar o Linear A, uma escrita da civilização minoica que permanece um mistério. Pesquisadores utilizam técnicas de aprendizado por transferência para aplicar conhecimentos de textos em Linear B — parcialmente decifrado — e abrir caminhos para a compreensão desse sistema desconhecido.

    Desafios e um futuro promissor

    Os rolos de Herculano, enterrados e queimados na mesma tragédia que destruiu Pompeia, são um dos maiores desafios. Esses documentos, enrolados em centenas de camadas, têm tinta à base de carbono, praticamente invisível em tomografias computadorizadas. Contudo, avanços recentes, incluindo o uso de algoritmos sofisticados, já permitiram a leitura de partes significativas desses textos, revelando obras inéditas, possivelmente de autores como o filósofo Epicuro.

    O impacto vai além de Herculano. Textos escondidos em camadas de pergaminhos medievais ou usados como invólucros de múmias egípcias agora podem ser acessados. Cada nova descoberta amplia nosso entendimento da história, fornecendo dados inéditos que antes eram inacessíveis.
    Conclusão: IA reescrevendo a história

    A aplicação de IA na decifração de textos antigos não apenas está recuperando fragmentos perdidos de conhecimento, mas também reescrevendo como entendemos a história. A capacidade de acessar, reconstruir e interpretar fontes inacessíveis promete um renascimento na arqueologia, história e estudos linguísticos.

    Com essas ferramentas, podemos revisitar os alicerces das civilizações e questionar narrativas históricas consolidadas. Afinal, como destaca a pesquisadora Thea Sommerschield, “a IA não só responde perguntas que já temos, mas também nos permite fazer perguntas que nunca imaginaríamos”. É um convite para que a ciência e a tecnologia continuem desvendando o passado — e inspirando o futuro.

    Fonte: https://www.nature.com/articles/d41586-024-04161-z

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