O que escolas e especialistas dizem sobre Altas Habilidades e Superdotação? 

Com o aumento dos diagnósticos e o tema em destaque, o Maringá Post ouviu especialistas e educadores para explicar o que são, como identificar e qual o melhor caminho para apoiar esses estudantes

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    O tema das Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) tem ganhado força no debate educacional brasileiro. No Paraná, a expressão mais concreta dessa mudança está nos dados do Núcleo Regional de Educação: em 2019, o estado registrava cerca de 1.500 estudantes matriculados com AH/SD; em 2024, esse número ultrapassou os 8 mil. Destes, 552 estavam em Maringá. O salto é reflexo de uma transformação profunda na forma de interpretar comportamentos e características de crianças e adolescentes, impulsionada nos últimos anos pela ampliação do conhecimento científico e pela maior qualificação de escolas, educadores e especialistas para identificar e trabalhar o tema.

    O que são as Altas Habilidades e a Superdotação

    As Altas Habilidades/Superdotação estão relacionadas a um desempenho acima da média em uma ou mais áreas do potencial humano. Essas áreas podem ser diversas: desde a inteligência acadêmica, facilmente percebida no desempenho escolar, até a articulação verbal, capacidades artísticas, liderança, pensamento criativo ou habilidades psicomotoras, como no esporte.

    A psicóloga Silvia Altoé, especialista em Educação Especial, Mestre em Educação na Área das Altas Habilidades/Superdotação, com mais de 21 anos de atuação dedicada a esse tema, atualmente avalia e atende em clínica e explica que, no Brasil, por muitos anos o Ministério da Educação optou por unificar as terminologias, adotando oficialmente a expressão “Altas Habilidades/Superdotação” desde a década de 90. Houve recente mudança para a expressão Altas Habilidades ‘ou’ Superdotação, diferenciando cada uma delas, no entanto no Paraná manteve-se a anterior. “Embora alguns pesquisadores façam distinções  considerando, as altas habilidades como aptidões mais específicas e a superdotação como algo mais generalista, para o Departamento de Educação Especial e Inclusão do Paraná (DEEIN/ SEED/ PR), mantém-se  a descrição anterior”. 

    A neuropsicóloga Karliny Uchôa, que realiza avaliações e testagens formais em Maringá, reforça que, tecnicamente, há diferenciações possíveis: “Todo superdotado apresenta alguma alta habilidade, mas nem toda pessoa com alta habilidade é superdotada. Pela literatura e pelas testagens, considera-se superdotado quem apresenta QI acima de 130. Já as altas habilidades podem aparecer em campos específicos como pensamento criativo, conhecimento aprofundado em determinado tema ou desempenho acadêmico muito acima da média, e serem identificadas por percentis elevados em áreas como linguagem, raciocínio lógico ou habilidades espaciais.”

    Essa variedade de manifestações significa que a superdotação não está restrita ao campo intelectual tradicional. Como explica Karliny, existem talentos que escapam às métricas formais, como habilidades artísticas, cinestésicas (movimento) ou de liderança. E, como reforça Silvia, é possível que indivíduos com outros quadros também apresentem destaque notável em determinadas áreas, evidenciando que o potencial humano pode coexistir com desafios e limitações.

    Como identificar? 

    Na maioria das vezes, é a escola que primeiro percebe indícios de Altas Habilidades/Superdotação. Professores e coordenadores observam comportamentos que se destacam na turma, como rapidez de aprendizagem, vocabulário elaborado e curiosidade acima da média. O Maringá Post conversou com a coordenadora pedagógica de um colégio da rede privada de Maringá, que relatou que esses sinais podem surgir muito cedo: “Desde muito pequenas, algumas crianças já demonstram vocabulário avançado, interesse por conteúdos mais complexos e uma busca constante por mais estímulo”. Algumas começam a ler sozinhas aos 3 ou 4 anos. A fala elaborada e a construção da linguagem são indicadores que chamam nossa atenção.”

    A psicóloga Silvia Altoé aponta como alguns dos sinais comuns podem ser a curiosidade intensa, a formulação de perguntas em sequência, a busca por explicações profundas e a ousadia ao propor hipóteses. “É comum apresentarem questionamentos que fogem do currículo convencional, com perguntas complexas que não cabem no conteúdo do momento, mas que merecem atenção e incentivo”, explica.

    Já a neuropsicóloga Karliny Uchôa acrescenta que muitas dessas crianças manifestam interesses muito fortes, às vezes chamados de “hiperfocos”, como fascínio por dinossauros, astronomia, geologia ou outros temas específicos. Também podem apresentar raciocínio ágil e facilidade para associar informações, o que as leva a se destacar tanto em disciplinas acadêmicas quanto em áreas ligadas à criatividade e à solução de problemas.

    Como é o diagnóstico? 

    Nem sempre as características mencionadas anteriormente garantem o diagnóstico de Altas Habilidades/Superdotação. Crianças curiosas, com linguagem avançada ou interesses intensos podem apenas estar vivenciando um ritmo de desenvolvimento diferente. Para confirmar a condição de AH/SD, é fundamental que a avaliação seja conduzida por especialistas, seguindo um processo criterioso e de acompanhamento.

    A neuropsicóloga Karliny Uchôa explica que é apenas o resultado de uma avaliação que pode indicar uma característica como AH/SD ou até mesmo descartar a presença de transtornos”, afirma. O diagnóstico mais preciso costuma ocorrer a partir dos 6 anos, quando as funções pré-frontais estão mais desenvolvidas e é possível aplicar testes abrangentes, como o WISC-IV, que mede competências de ambos os hemisférios cerebrais e fornece um índice de QI mais fiel.

    Antes dessa idade, entre os 2 anos e meio e os 6 anos, é possível utilizar testes que oferecem indícios de precocidade, mas que, sozinhos, não permitem fechar o diagnóstico. “Nesses casos, recomenda-se uma reavaliação posterior, justapondo as evidências iniciais a novos dados obtidos com instrumentos mais robustos”, explica Karliny. Ela reforça que o processo deve integrar diferentes fontes de informação, como relatos de pais e professores, além da aplicação de escalas que analisam o comportamento e o repertório da criança.

    A psicóloga Silvia Altoé complementa que o diagnóstico de Altas Habilidades/Superdotação é complexo e envolve múltiplos critérios, inclusive aspectos socioemocionais, de personalidade e dos contextos ambientais aos quais a criança está inserida. Um dos instrumentos utilizados para essa análise é a Teoria Triárquica de Renzulli, do pesquisador norte-americano Joseph Renzulli, que estabelece três características fundamentais para a identificação do perfil dessas crianças: desempenho acima da média, envolvimento com a tarefa e criatividade.

    “O primeiro critério é o desempenho acima da média: a criança se destaca, tem facilidade e dedicação em alguma área. O segundo é o envolvimento com a tarefa: são crianças engajadas, que demonstram persistência e interesse profundo por temas que podem variar ao longo do tempo — como dinossauros, planetas, plantas ou eletrônica — e buscam entender os detalhes, fazendo perguntas insistentes sobre o ‘porquê’ e o ‘como’. O terceiro anel é a criatividade: essas crianças são inventivas, levantam hipóteses, correlacionam ideias e formulam pensamentos originais, muitas vezes precocemente”, explica Silvia.

    Ela ressalta ainda que essas crianças costumam ter facilidade na comunicação, linguagem avançada e coragem para tomar iniciativas, características que exigem um atendimento escolar cuidadoso para que o potencial seja estimulado sem inibir seu entusiasmo.

    O que acontece nas escolas

    O Maringá Post conversou com Maria Lúcia Tavares, educadora e Coordenadora Pedagógica do Colégio Platão, em Maringá, onde, atualmente, mais de 20 estudantes são identificados com Altas Habilidades/Superdotação. A coordenadora explica que o atendimento vai além das aulas convencionais e que a instituição mantém as portas abertas para o trabalho interdisciplinar com psicólogos, neuropsicólogos e outros especialistas externos. “Trabalhamos muito em parceria com com outros profissionais e levamos muito a sério o aspecto emocional dessas crianças”, afirma.

    O objetivo da escola é construir um Plano de Ensino Individualizado (PEI), que acontece no contraturno e é voltado a estimular interesses e talentos específicos. Não se trata de cumprir conteúdos obrigatórios do currículo, mas de criar experiências que favoreçam a expressão das potencialidades. Para isso, uma equipe de professores e monitores acompanha de perto cada estudante, propondo atividades que podem envolver desde pesquisa acadêmica e produção artística até desafios práticos em áreas como tecnologia, ciência ou esportes.

    A psicóloga Silvia Altoé ressalta que esse movimento é parte de uma mudança mais ampla no Paraná, estado que desde 2003 mantém salas de recursos na rede estadual, sendo a primeira no interior inaugurada em Maringá, no Instituto de Educação. “A identificação de alunos parte muitas vezes do olhar dos próprios professores, que notam talentos e encaminham para avaliação. A escola é chamada a valorizar esses sinais, para que a criança não se sinta desencorajada ou sofra bullying”, afirma.

    Aceleração escolar: quando e por que?

    A possibilidade de reclassificação — termo técnico usado para designar o avanço de etapa escolar — é um tema delicado e que exige cautela. Para Maria Lúcia, a decisão deve envolver todos os profissionais responsáveis, considerando não apenas a capacidade cognitiva, mas também a maturidade emocional. “Já tivemos casos em que a criança pediu mais estímulo e, mesmo com capacidade para avançar, a decisão foi por mantê-la na turma. Em outros casos, quando a permanência estava gerando sofrimento, foi feito o processo de reclassificação com acompanhamento psicopedagógico, emocional e legal junto ao Núcleo de Educação”, relata.

    No âmbito estadual, explica Silvia Altoé, a Instrução Normativa Conjunta nº 007/2022 – DEDUC/DPGE/SEED estabelece os procedimentos para a aceleração no Paraná. No entanto, essa não é sempre a melhor alternativa. Em muitos casos, o enriquecimento curricular dentro da própria série é mais benéfico, oferecendo novos desafios sem romper com o grupo social da criança e preservando etapas do desenvolvimento. Outra importante opção é o enriquecimento no contraturno escolar. “Quando a criança permanece por muito tempo apenas em atividades que já domina, sem ser desafiada, pode perder o interesse. Isso pode ser evitado com atividades adicionais, encontros com especialistas ou desenvolvimento de projetos de pesquisa”, defende.

    A importância de seguir pautando o assunto

    O tema das Altas Habilidades/Superdotação ainda é pouco compreendido pela sociedade e envolve questões complexas e delicadas. Por isso, manter o debate vivo é fundamental para ampliar o conhecimento, reduzir estigmas equivocados e acolher com mais empatia crianças e adolescentes que enfrentam desafios únicos. Identificar e valorizar as potencialidades de cada estudante é um compromisso com o desenvolvimento integral, que inclui o aspecto emocional, social e intelectual.

    Para a psicóloga Silvia Altoé, dar visibilidade ao tema é também combater a invisibilidade histórica desses estudantes, que por muito tempo foram negligenciados ou desacreditados. A neuropsicóloga Karliny Uchôa reforça que informação e preparo são essenciais para que famílias e escolas não apenas reconheçam os talentos, mas criem condições para que eles se desenvolvam de forma saudável e integrada.

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