A reprovação, por sete vereadores, do projeto de lei que daria o direito do uso do nome social na administração, de autoria do vereador Flávio Mantovani (Rede), está recebendo repúdio de várias instituições, tanto ligadas aos movimentos LGBTQIA+, quanto as que defendem os direitos individuais. A subseção de Maringá da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero e da Comissão de Enfrentamento a Violência de Gênero, também abordou o caso e está divulgando uma Nota Pública com duras críticas aos vereadores que negaram o direito ao uso do nome social, entre eles um que foi eleito usando o nome social.
A Nota é assinada pela presidente da Subseção da OAB, Ana Cláudia Pirajá Bandeira, e pelas presidentes das comissões da Diversidade Sexual e de Gênero e do Enfrentamento à Violência de Gênero, Francielle Lopes Rocha e Carolina Cleópatra Codonho da Silva.
A Nota Pública da OAB, na íntegra, é a seguinte:
A COMISSÃO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO e a COMISSÃO DE ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO, ambas devidamente registradas na ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL SUBSEÇÃO DE MARINGÁ – reafirmando o seu compromisso com a defesa do Estado Democrático de Direito e com a consecução de uma sociedade livre, justa, inclusiva e democrática – vem a público manifestar repúdioà rejeição do Projeto de Lei Ordinária 15805/2021 pela Câmara Municipal Maringá, por 7 votos a 6, nos termos a seguir dispostos:
Compreendido como um elemento individualizador e identificador, o nome civil é dotado de uma característica personalíssima que define o seu titular e é, também, um elemento de extrema relevância social, pois se torna responsável pela personificação e pela individualização do sujeito, não só em macroesferas sociais, mas como no núcleo familiar e no meio ambiente de trabalho.
O nome é composto por marcas linguísticas e, como tal, não representa apenas as características inanimadas das coisas, mas é capaz de produzir efeitos concretos. Assim, o nome produz efeitos tangíveis sobre os seus titulares, pois ao caracterizá-los identifica, dentre diversos signos, a própria condição de pertencimento e autoidentificação, pelo qual, é compreendido como um direito de personalidade.
O conceito moderno de direitos de personalidade possui como fundamento o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, inscrito no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988, que se projeta em todas as esferas da vida e é o valor fundante que serve de alicerce à ordem jurídica democrática, constituindo-se, também, como cláusula geral de concreção da proteção e do livre desenvolvimento da personalidade.
Os direitos de personalidadesão expressões da pessoa humana considerada em si mesma e compõem um núcleo irradiante de proteções e garantias, de imperativos e instrumentos de proteção que influenciam todas as relações jurídicas, sociais, econômicas e que têm como ponto de origem a dignidade humana.
O Código Civil versou, em seu Capítulo II, nos arts. 11 a 21, acerca dos diretos de personalidade, e estabeleceu, no art. 12, a cláusula geral de proteção contra ameaça ou lesão ao direito de personalidade “que deriva do princípio constitucional disposto no art. 1º, III, da dignidade da pessoa humana, devendo dessa forma receber proteção (…) os direitos que representam a proteção da personalidade humana”.
Denota-se, portanto, que o ordenamento jurídico pátrio confere ampla tutela aos direitos da personalidade, que, fundamentados na dignidade da pessoa humana, configuram-se enquanto categoria especial de direitos subjetivos que visam garantir o pleno desenvolvimento do ser humano, tanto em sua concepção física, quanto moral.
Destaca-se, que o direito à identidade – que compreende tanto o nome civil,quanto o social – é um direito da personalidade,e não deve ser considerado como simples elemento de identificação pessoal, mas como um direito fundamental, pois é uma expressão objetiva da dignidade humana e um instrumento de promoção da personalidade.
Não obstante, a ordem jurídica – constitucional e infraconstitucional; legal e infralegal – ampara o direito ao reconhecimento do nome social das pessoas transexuais e das travestis, justamente, porque além de a autodeterminação pessoal ser um direito personalíssimo, a Constituição Federal postula, nos incisos I e IV do art. 3º, como sendo objetivo fundamental da República, a promoção do bem de todos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação.
A Constituição de 1988 vigente assegura garantias e liberdades individuais. Muitos brasileiros, impendentemente de sua identidade de gênero, fazem uso informal do Nome Social em seu cotidiano (seja por questões de constrangimentos, abreviações do nome, uso cultural, artístico e político).
Nesse sentido, em âmbito federal, o direito ao uso do nome social – uma irrefutável conquista que, em observância aos princípios da igualdade e liberdade (art. 5º CF), corrobora na promoção da cidadania plena da população LGBTQIA+ – é garantido pelo Decretonº. 8727/2016, que dispõe sobre o dever dos órgãos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional de adotar o nome social da pessoa transexual e travesti.
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Em razão do reconhecimento do direito personalíssimo e fundamental ao nome social, a Portaria do Ministério da Saúde nº 1.820/2009; a Portaria do Ministério da Educação e Cultura nº 1.1612/2011 e Resolução 1/20018; a Instrução Normativa da Receita Federal nº 1.548/2017; a Resolução 270 do Conselho Nacional de Justiça; o Decreto 9.278/2018, a Resolução 23.562/2018 do Tribunal Superior Eleitoral e o acordo firmado Advocacia Geral da União (AGU), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Secretaria de Trabalho e Previdência Social do Ministério da Economia nos autos da Ação Civil Pública nº 1002557-84.2020.4.01.4200, 1ª Vara Federal Cível e Criminal Da SJRR, garantem, respectivamente, o direito ao uso do nome social no prontuário de atendimento médico e carteiras de identificação do Sistema Único de Saúde; nos registro de educação básica e superior de educação; nos cadastros da Receita Federal e CPF; em todo o âmbito do Poder Judiciário; Estadual e Federal; nos institutos estaduais de identificação e no RG; nos cadastros e títulos eleitorais e na Carteirade Trabalho e Previdência Social (CTPS) e, ainda, no alistamento militar (Decreto8727/2016).
Além disso, o Cadastro Único para Programas Sociais, o CadÚnico, adota, desde o ano de 2015, a possibilidade do uso do nome social, sendo que este direito personalíssimo e fundamental também garantido é pelo Ministério Públicoe Defensoria Pública.
Ademais, no ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.275, consignando que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero” e que a “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la […]”, possibilitou que as pessoas transexuais e travestis promovessem a alteração do registro civil diretamente em cartório, reconhecendo, portanto,o pleno direito da autodeterminação pessoal das pessoas transexuais e travestis.
Em que pese o narrado, o Projeto de Lei Ordinária 15805/2021, que dispunha sobre o uso do nome social no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo do Município de Maringá, foi rejeitado em plenário na sessão de 13/07/2021.
A matéria proposta pelo referido projeto de lei corrobora com os princípios constitucionais erigidos pela Constituição Federal de 1988, bem como se consubstancia em instrumento de concretização da dignidade da pessoa humana, sendo que o Legislativo Municipal, ao rejeitar o reconhecimento do nome social da população de travestis e transexuais, não cumpriu o seu papel de primar pela vedação à discriminação odiosa, pela proibição de tratamentos desumanos ou degradantes e proscrição de todas as formas de discriminação.
Quando o Legislativo Municipal nega – ainda que, como no caso, por omissão – o uso donome socialno âmbito dos poderes Legislativo e Executivo do Município de Maringá,mitiga direitos fundamentais de uma população vulnerabilizada e corrobora paraoretrocessodeconquistas já alçadas, obstando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 1º, III CF), bem como o exercício pleno de um direito já reconhecido em todas as outras esferas de atuação dos poderes da República.
Deste modo, a Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero e a Comissão de Enfrentamento a Violência de Gênero da OAB, subseção de Maringá, entendem que o reconhecimento do nome social importana efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, e, portanto, emitem a presente nota conjunta, não apenas para repudiar e lamentar o retrocesso observado, mas também para requestar que, quando possível, o referido projeto retorne à Câmara Municipal, para que – após debates públicos –seja novamente apreciado, garantindo-se, assim, a tutela e a efetivaçãodos direitos identitários (fundamentais e personalíssimos)da população transgênero e, primordialmente, das servidoras e servidores públicos municipais.
Maringá, 14 de julho de 2021.
Ana Cláudia Pirajá Bandeira
Presidenta da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção Maringá-PR
OAB/PR 18.550
Francielle Lopes Rocha
Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero – OAB Maringá
OAB/PR 75.321
Carolina Cleópatra Codonho da Silva
Comissão de Enfrentamento à Violência de Gênero – OAB Maringá
OAB/PR 82.775
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