No centro de uma sala pequena um jovem negro, de 17 anos, está nu, despido, amordaçado e sendo chicoteado por dois homens. A cena descrita não é do Brasil do século 18 ou 19, mas foi registrada em agosto de 2019 e divulgada nas redes sociais por meio de um vídeo de 40 segundos. Dois seguranças de um supermercado na zona sul de São Paulo chicotearam o jovem que teria tentado furtar uma barra de chocolate.
A cena lembra um fantasma que o Brasil ainda não encarou e que é responsável pela formação desigual da sociedade brasileira: a escravidão. É esta ferida aberta que o escritor maringaense, Laurentino Gomes, aborda na nova trilogia de livros. “Não é assunto de museu, é um tema vivo e presente na sociedade brasileira hoje. Quando a gente fala de desigualdade social estamos falando do legado da escravidão”, afirma.
O primeiro livro da trilogia, “Escravidão Vol. 1 – Do primeiro Leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, lançado pela Editora Globo, cobre um período de 250 anos sobre o período da escravidão, mas que para o autor não acabou definitivamente com a Lei Áurea em 1888. “A escravidão é visível no noticiário, no dia a dia, com as manifestações de preconceito, ou em cenas violentas como essa [do supermercado]”.
Laurentino Gomes lança o novo livro em Maringá nesta quarta-feira (18/9), às 19h, na Livrarias Curitiba do Maringá Park Shopping Center. A entrada é gratuita e o escritor vai atender aos leitores pela ordem numérica das 300 senhas, que já podem ser retiradas na livraria. Nascido em Maringá e formado em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Gomes é autor dos best-sellers “1808”, “1822” e “1889” sobre a história do Brasil.
Em entrevista ao Maringá Post uma semana depois de participar da Bienal do Livro no Rio de Janeiro, em que se manifestou contrário a tentativa de censura imposta à feira, o escritor conta que após escrever a trilogia sobre a história do Brasil percebeu que deveria entender de maneira mais profunda a sociedade brasileira, o que ele chama de “DNA do que somos hoje”.
“Era preciso dar um mergulho maior e daí aparece a escravidão como assunto mais importante da história brasileira. Tudo que já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com nossas raízes africanas e principalmente com a maneira que nos relacionamos com isso no século 21″, afirma Laurentino Gomes.
O Brasil foi o maior território escravista do continente americano. Além disso, foi o último a abolir o tráfico negreiro em 1850 e também o último a pôr fim à escravidão, em 1888, 15 anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. O primeiro navio negreiro chegou no Brasil por volta de 1537 ou 1538 e nos três séculos seguintes desembarcaram quase 5 milhões de povos africanos. Quase ninguém voltou.
Para escrever a trilogia, Laurentino Gomes viajou por 12 países e leu cerca de 200 livros. No entanto, segundo o escritor, o que mais chamou atenção durante as observações e pesquisas foi a dimensão dos números. De acordo com ele, cerca de 15% de todos os africanos que eram presos nos navios negreiros morriam. São 14 cadáveres jogados ao mar todos os dias durante três séculos e meio.
Apesar de todos os números e relatos históricos, o autor afirma que o Brasil nunca conseguiu encarar de frente as consequências da escravidão. Após a Lei Áurea, os negros foram abandonados a própria sorte, não houve distribuição de riquezas, alfabetização e nenhuma política pública.
“O Brasil foi organizado de uma maneira que permitia a um grupo de colonizadores europeus explorarem o trabalho e comercializarem outro grupo social como se fossem mercadoria. Isso ocorreu durante três séculos e meio, pelo menos, e eu diria que essa organização da sociedade brasileira permanece ainda hoje. Somos uma sociedade de castas marcada por profunda desigualdade social e isso é um desafio histórico que o Brasil nunca enfrentou”, explica Gomes.
De acordo com o escritor, em vez de resolver a questão, o Brasil construiu mitos. O primeiro deles é que a escravidão teria sido “mais boazinha no Brasil” e que o país teria se tornado uma democracia racial. “Isso é mito, é um processo de auto negação. Como os passivos históricos não vão embora, eles permanecem como uma ferida aberta”. Aproveitando desse tema sensível, algumas pessoas negam que houve escravidão no Brasil.
“Um argumento racista visto com muita frequência é que africanos escravizavam africanos, que negros escravizavam negros, e que os brancos não têm nada a ver com isso. Mostro no livro que sim, havia escravidão na África, tanto quanto na Ásia e na América. Onde existia ser humano, existia escravidão. Agora, querer culpar os negros pela escravidão é um argumento racista e usado para manipular a opinião pública e para combater políticas de governos destinadas a combater o legado da escravidão”, diz o escritor.
Relação de Laurentino Gomes com Maringá
Nascido em Maringá, Laurentino Gomes afirma que vem com frequência visitar familiares e amigos na cidade e região. Ele também é membro da Academia de Letras de Maringá e coleciona homenagens na Festa Literária Internacional de Maringá (Flim). Além disso, o escritor também confessou ser amante da cidade canção.
“Se a gente tivesse que sonhar um Brasil, um Brasil relativamente desenvolvido, com boa qualidade de vida, onde a pessoas fossem tratadas de forma minimamente civilizada, acho que Maringá pode ser um farol para esse novo Brasil. Claro que a cidade tem problemas, mas comparado com o que tenho visto, Maringá seria uma cidade do nosso país dos sonhos”, diz Gomes.
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