Em 1816, uma jovem britânica ouviu uma história sobre um cientista que havia eletrocutado um cadáver de sapo, e como este cadáver havia se movido. A informação a perturbou tanto, que a jovem, casada com um escritor, decidiu escrever um livro de terror sobre um cientista que revivia um cadáver humano usando eletricidade. Esta jovem era Mary Shelley, seu livro era Frankenstein – o Prometeu Moderno, e apesar de ter escrito um livro de terror gótico, sem saber Shelley estava se tornando a mãe da ficção científica.
Se você tem acompanhado minha coluna, já deve ter percebido que eu tenho um certo fascínio pela interação que existe entre a ficção especulativa e a realidade – E no caso da ficção especulativa escrita para o entretenimento, eu já deixei minha visão sobre o assunto clara.
Mas hoje eu queria falar de algo um pouquinho diferente: E quando essas invenções são descritas em uma ficção especulativa cujo propósito não é só o entretenimento, mas de fato, ser uma previsão baseada nos fatos de como o mundo vai ser? Porque há muito, muito tempo, seja em revistas de ciência popular, em programas de TV, ou no que for, pessoas tentam especular sobre com o que o “mundo de amanhã” vai parecer. E essas peças, apesar de terem sim certo embasamento no estado da arte da ciência e tecnologia, são sim ficção especulativa.
Essa coluna é mais “Por diversão” que qualquer coisa. Só olhando para essas coisas do passado e comparando as previsões com a realidade. Definitivamente há alguma coisa a se aprender aqui, mas isso é de interesse secundário.
2020 de acordo com 2005 – Cibórgues, TVs, e o fim do petróleo
Começamos com um par de artigos publicados pelas revistas Popular Science e Popular Mechanics em 2005 (os links manda pra vídeos sumarizando os artigos, pdfs arquivados de revistas estrangeiras antigas são ruins de achar, e o youtube é de graça, me processe). Eu estava para dizer “Não tanto tempo atrás”, mas aí me toquei que foi há 19 anos atrás.
Uma das previsões que aparece aqui, e que veremos novamente quando eu falar de uma previsão feita em uma época ainda mais antica, é a ideia de que telas estariam em todo lugar. E com isso eu quero dizer que de acordo com os escritores de 2005, em 2020 casas teriam um papel de parede feito inteiramente de células OLED, e todas as superfícies da casa seriam televisores/monitores em potencial.
De certa forma telas estão em todo lugar, mas ao invés de pintarmos as paredes com telas, o que aconteceu foi algo bem mais ‘sem graça’ mas ao mesmo tempo mais prático – Dois anos depois da publicação deste artigo a Apple lançou o iPhone, e desde então, todo mundo carrega uma pequena tela de 4 a 7 polegadas consigo.
Uma outra previsão que meio que aconteceu, mas não do jeito que a revista especulava, é a ideia de uma “televisão holográfica” – A ideia descrita na revista era uma televisão que teria centenas de painéis de LCD transparentes empilhados um atrás do outro, sendo capaz de receber e exibir, portanto, uma imagem com um eixo de profundidade. Uma televisão tridimensional que seria como olhar por uma ‘janelinha’ para o que estava acontecendo.
De novo, isso meio que aconteceu, mas não desse jeito. Televisores 3D que usavam óculos polarizados tiveram um breve momento de popularidade…
Mas mais próximo do descrito na revista (no sentido de não precisar de óculos para ver, e de parecer menos que ‘coisas saltam da tela’ e mais que ‘você está olhando por uma janelinha pra outro mundo’) é a tecnologia que foi usada pela Nintendo em seu console 3DS (2011-2017). Ao invés de usar várias camadas de painéis de LCD transparentes, o 3DS usava apenas dois painéis de LCD, que eram montados em um arranjo lenticular que podia ser ajustado por meios eletromecânicos.
O resultado, quando funcionava, era um display com efeito de profundidade que não requeria nenhuma forma de óculos especial.
Mas como podemos constatar pelo fato de que essa tecnologia não é usada em todo celular hoje em dia, o negócio não durou.
Foi usado pela Nintendo em alguns modelos de seu video game, e então abandonado.
As razões pela tecnologia não ter emplacado eram várias – O efeito só funcionava se você segurasse o aparelho no ângulo e distância certos, então podia esquecer jogar no ônibus enquanto ele balança, o que é bem ruim para um aparelho portátil. E além disso causava fatiga visual (como entusiasta da máquina, posso contar uma historinha sobre um dia que eu fiquei 14 horas jogando nela, e depois de parar, olhava para paredes e via elas se ‘movendo’ pra frente e pra trás, esse dia foi loko).
Como resultado, os jogadores normalmente optavam por só desligar o efeito tridimensional, coisa que podia ser feita com um interruptor ao lado da tela.
E agora para a previsão mais triste: No artigo, a revista discutia uma tecnologia chamada Second Sight, uma tecnologia de implantes retinais que podia “curar a cegueira” (ou, melhor dizendo, dar a pessoas cegas a capacidade de enxergar certas coisas).
A questão é que isso aconteceu: A empresa conseguiu desenvolver a tecnologia. Ela funcionava. Algumas pessoas cegas (e ricas) tiveram sua vista restaurada.
… E aí a empresa foi à falência, e agora sem ninguém para dar suporte técnico a seus olhos biônicos, essas pessoas agora estão condenadas a lentamente ficarem cegas de novo, conforme os componentes vão falhando sem poderem ser substituídos ou mantidos.
Para a previsão mais errada feita pelas revistas, podemos falar de peak oil. A ideia é que chegaríamos a um ponto em que o planeta estaria produzindo todo o petróleo que ele é capaz de produzir, ou seja, deste ponto pra frente, o petróleo ia começar a acabar, nos obrigando a finalmente abandonar os combustíveis fósseis.
Isso não aconteceu. Digo, é inevitável que um dia vá acontecer, petróleo é uma energia “não renovável” por uma boa razão. Mas ao que parece, se continuarmos na direção que estamos, a crise climática causada pelos combustíveis fósseis vai “nos pegar” muito antes das reservas de petróleo do planeta realmente chegarem perto de se esgotar.
Levitação, lasers, e tomadas sem tomada: A década de 2020 de acordo com a década de 1980
Em 2005 o cenário tecnológico era diferente do de agora, mas várias coisas já estavam bem encaminhadas. Então é claro que muitas das previsões estavam quase-certas ou certas-do-jeito-errado. Mas a distância entre nós e a década de 80 é muito maior, não só em tempo, mas em questões culturais, tecnológicas, materiais, e tantas outras.
Então. O que pessoas entre 87 e 89 tinham a dizer sobre o mundo de quase 40 anos no futuro? Minhas fontes aqui são dois segmentos transmitidos pela BBC na época, que são mantidos em arquivo pela empresa no YouTube.
Um ponto em comum entre as previsões feitas em 2005 e as feitas em 1988 é a ideia de tudo se tornar uma tela, exceto que enquanto o povo de 2005 falava de painéis de OLED substituíndo o papel de parede, em 88 falava-se de janelas.
A ideia é que vidros seriam substituídos por uma geringonça feita de camadas de vidro e camadas de LCD (que já existia na época, embora estivesse em sua infância), e que seria capaz de exibir coisas como uma tela de computador, mas também de se tornar completamente transparente ou completamente opaco, sob comando do usuário.
Bem. Vidro que altera sua opacidade existe. É chamado de “Smartglass Eletrocrômico” e é bem legal de se ver. Mas ele não tem controle suficiente para ser usado como um display… E quando falta energia ele volta a ser completamente transparente, o que torna a aplicabilidade dele como uma ferramenta de privacidade bastante questionável.
Uma coisa que foi prevista em um destes segmentos dos anos 80 que sequer foi mencionada em 2005 foi a ideia de tecnologias ativadas por voz, capaz de mudar o que está sendo visto na televisão, acender e apagar luzes, mudar a temperatura do ar condicionado, etc.
Isso é: O conceito que hoje chamamos de ‘smart home’.
Outra coisa prevista nos anos 80 de forma relativamente precisa é a ideia de aparelhos de entretenimento ultraportáteis e de GPSes pessoais. Eles erraram foram detalhes estéticos: No programa de TV isso é apresentado como um rádio e uma antena de GPS costurados no forro de um casaco. (… E aí você teria que pagar o preço de um novo aparelho eletrônico toda vez que comprasse uma blusa? E no verão como faz?? Bem, é a BBC, acho que em 88 não existia verão na Inglaterra ainda.)
Falando em coisas portáteis – Nos anos 80 os computadores pessoais já estavam se popularizando no primeiro mundo, os primeiros celulares, na época instalados no interior de carros, também – E o conceito de miniaturização já havia sido introduzido no imaginário popular pelo Walkman no final da década de 70.
Então, claro, eles já pensavam em aparelhos de computação-e-comunicação ultraportáteis. – A parte que eles erraram, no entanto, é que falavam destes dispositivos como sendo vestidos no pulso, como relógios.
Smartwatches até existem, mas sempre foram artigos para um pequeno nicho… E em geral agem só como acessórios para o verdadeiro centro da vida computacional moderna que é o smartphone.
Talvez a coisa mais fofa destes segmentos é quando o apresentador fala de uma enciclopédia do futuro… E descreve uma coleção de bolas de cristal que seriam inseridas em uma geringonça para apresentar os artigos como projeções holográficas.
Na década de 80 já haviam pesquisadores teorizando coisas que se pareceriam com a web moderna, mas na imaginação popular que alimentava esse tipo de programa de TV, a ideia de só “usar um computador (que já existiam) para pesquisar uma base de conhecimentos digital (que já existiam), exceto que ela está conectada a uma rede global (conexões de rede e modens já existiam, é só que redes na época eram locais)” é um pouco sem graça demais, se comparado a cristais de conhecimento e hologramas.
As previsões mais surreais feitas por ficção especulativa sempre são as que viajam demais – Na vida real as melhores tecnologias, as mais transformativas, são iterações melhoradas de coisas que já existiam.
E então saímos das coisas certas e quase-certas, e entramos nas doideiras. Os segmentos falam de um processador de alimentos que pica a comida usando raios laser (boa sorte, fazer isso sem incinerar a comida no processo seria impossível), e de uma “sala de levitação” que estaria presente em todas as casas na década de 2020.
… Mas sendo a BBC, existe uma chance deste último ser uma forma de humor seco britânico.
Uma última previsão feita por eles, que é citada nos dois segmentos, e que então eu imagino ser séria, é algo que eu não sei de onde eles tiraram. A ideia de que ao invés de procurar uma tomada para ligar aparelhos elétricos, o ‘conector’ seria um imã que se adere a qualquer lugar da parede, e consegue puxar eletricidade de dentro dela, independente de onde for.
Eu cito essa uma porque… Bem. Eu queria que ela fosse real.
Os anos 80 de acordo com os anos 60, de acordo com os anos 80
Por último… Esse um eu vou só mencionar e deixar o link. Um outro segmento da BBC dos anos 80, exceto que eu não consegui achar o original, só uma versão comentada. Neste um, pessoas dos anos 80 reagiam a previsões que o canal tinha feito nos anos 60, sobre como seriam os anos 80.
Gaste seu inglês aqui se quiser. É estupidamente divertido. Previsões incluem mulheres de cabeça raspada, brincos-que-são-rádios, e roupas de papel.
Tentando puxar isso para alguma forma de conclusão satisfatória – O que fica pra mim destas relíquias do futuro-do-passado é que elas sempre apresentam um certo otimismo sobre a tecnologia e o efeito que ela teria em nossas vidas.
Eu dificilmente observo isso quando se fala de tecnologias futuras hoje em dia. O que eu observo é a discussão do impacto negativo que as novas invenções podem acabar tendo, no ambiente, em empregos, na privacidade, etc.
A frase “(…) perdeu o mandado dos céus” era algo dito sobre imperadores na China Antiga, quando estes tomavam decisões ruins e se tornavam particularmente impopulares. A instabilidade sociopolítica que inevitavelmente se seguia era vista como um sinal de que os deuses, que um dia haviam favorecido aquele imperador e dado a ele o direito de governar, o haviam abandonado.
Eu não acredito que o mandado dos céus realmente exista… Mas metaforicamente falando, a indústria tecnológica era a ‘dinastia escolhida pelos deuses’ até uns 10 anos atrás. As invenções que ela trazia iriam tornar nossas vidas melhores e nos salvar dos desastres que nós mesmos estávamos criando. E então, ela pisou na bola, de novo e de novo. E agora toda novidade apresentada pela indústria tecnológica é recebida com ceticismo primeiro.
Escrito por Vitor Germano para o Maringá Post
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