A notícia da área tecnológica da semana definitivamente é o bloqueio do X/Twitter (eu gosto de chamar de Xitter, mas o trocadilho só funciona em inglês) aqui no Brasil – Mas eu não quero falar sobre isso hoje. Não quero porque não preciso: Já falei sobre na semana passada, é só trocar alguns específicos, “Telegram” por “Xitter”, “Pavel Durov” por “Elon Musk”, “França” por “Brasil”, “Prisão” por “Bloqueio”, e adicionar meia dúzia de comentários sarcásticos a mais para levar em conta que eu tenho bem menos simpatia pelo Musk, que já deu bem mais exemplos de hipocrisia que o Durov (e o Durov já deu muitos!)
Então vamos falar de um outro assunto, um do qual eu falo bastante, mas do qual ainda dá pra tirar bastante leite: IA. Especificamente, quando a IA não é IA, e quando algo é IA mas não é chamado disso.
No fim dos anos 90, começo dos anos 2000, quando a Internet era uma coisa nova e excitante, várias empresas inseriram “.com” ou “internet” em algum lugar do seu nome, mesmo quando o negócio delas não tinha nada a ver com internet. Eu tenho uma vaga lembrança, inclusive, de consumir um cereal chamado ‘chokos.com’. Era… Um cereal. Pense ‘nescau cereal mas de outra marca’. Mas por alguma razão, tinha coisas “internéticas” na embalagem.
Pois bem. A palavra da moda hoje em dia é “Inteligência Artificial”, “IA” – Embora haja rejeição por parte do público consumidor, e riscos comprovados envolvendo a tecnologia, o fato é que de acordo com os investidores e empreendedores da indústria tecnológica, IAs são o futuro, e talvez eles estejam certos mesmo – Mas quer eles estejam ou não, nesse momento, há dinheiro a ser ganho em criar inteligências artificiais… Ou, pelo menos, em convencer pessoas de que você está criando inteligências artificiais.
O Turco Mecânico
Em 1770 uma invenção brilhante chocou o mundo: O Turco Mecânico. Um autômato capaz de jogar xadrez habilidosamente. Seu “inventor”, o austríaco Wolfgang von Kempelen, que era de fato um mecânico talentoso, responsável por motores a vapor e outros mecanismos, construiu uma criação de aparência humanóide, permanentemente fundido a um caixão de madeira onde se localizava não apenas o tabuleiro de xadrez, mas um complexo sistema de engrenagens.
Por 84 anos o Turco viajou pela Europa, visitando as cortes de reis e duques, e impressionando com sua “Inteligência Artificial”, capaz de competir em nível igual com mestres de xadrez, mesmo quando perdia.
Apenas após a morte de Wolfgang, um dos filhos do mecânico revelou a verdade: O turco era um truque elaborado. De fato, tratava-se de uma máquina mecânica complexa e impressionante– Mas não havia inteligência alguma nela. O que havia, era um operador humano, um mestre enxadrista que ficava escondido em um compartimento apertado dentro do caixão, e que era responsável por observar o tabuleiro e realizar as jogadas, operando o ‘humanóide’ como o boneco que este era.
Séculos depois, a empresa mais rica do ramo da internet, a Amazon, lançou um serviço de crowdsourcing – E deu a ele o nome irônico de “Mechanical Turk”, ou “MTurk”. O serviço permite que usuários tenham a experiência de pedir algo a uma máquina… Sem que haja máquina. Por um pagamento, o serviço é enviado a um trabalhador aleatório, que resolve o problema e entrega o resultado. É possível, para um assinante do MTurk, criar um programa de computador que realiza partes do processamento na máquina… E chama um humano para quando o trabalho é difícil para o computador.
PrecIArização
Talvez seja óbvio, mas se não é, vamos chamar o serviço prestado pelo MTurk do que ele é: Precarização, ou, se você quiser usar uma palavra moderninha, “Uberização”.
Trabalhadores informais (“freelas”) são pagos alguns trocos para realizar trabalhos, e a empresa que age como intermediária tira um lucro do negócio, em troca de “conveniência”. Mas pelo menos, a MTurk é sincera sobre isso. É uma empresa de serviços terceirizados, e admite que é isso que faz.
Mas a própria Amazon já mentiu sobre estar usando “IA”. Em 2022 a empresa abriu lojas físicas em várias localizações, lojas que não tinham nenhum funcionário: Chamaram isso de tecnologia “Just Walk Out” (lit. “Só ir embora”), e alegaram para a imprensa que as lojas usavam de uma combinação avançada de sensores, aprendizado de máquina, e câmeras para registrar o consumidor e o que este estava comprando, para só mandar a conta pro cartão de crédito depois, sem o consumidor ter de passar por nenhuma maneira de caixa.
Bem, as lojas começaram a fechar em massa este ano após serem pêgas em um escândalo – Porque de fato haviam câmeras e sensores. O que não tinha, era o aprendizado de máquina. O que as lojas estavam fazendo, na realidade, era contratar um pequeno exército de funcionários na Índia, que observavam os vídeos e sensores, e realizavam a entrada de dados manualmente.
E é claro, a Amazon passa longe de ser a única. Desde 2016, de antes de “IA” ser a palavra da moda, já haviam histórias de empresas que declaravam estar empregando “assistentes virtuais”, quando o que havia do outro lado da linha era um funcionário humano, sendo pago para fingir ser uma máquina.
O incomparável poder de “parecer Ficção Científica”
A questão aqui é que IA não é uma invenção nova, não realmente. O campo de Inteligência Artificial como área de pesquisa acadêmica existe desde 1956, e já passou por dezenas de ciclos de otimismo e decepção. Talvez você já tenha ouvido falar no DeepBlue ou no AlphaGo, supercomputadores famosos por fazer na vida real aquilo que o turco mecânico falhou em fazer em 1770, e serem máquinas que podem derrotar mestres em jogos de tabuleiro.
E antes que você pense que até agora, IA estava confinada ao meio acadêmico e a estas descobertas que mais servem para provar o potencial da tecnologia, este definitivamente não é o caso. Isso porque o termo “Inteligência Artificial” é… Extremamente abrangente, cobrindo qualquer algoritmo de computação que seja capaz de tomar decisões e “aprender”.
Você provavelmente interage com “IA” o tempo todo sem nem pensar no assunto: O sistema de navegação usado em apps como Waze e Google Maps utiliza de aprendizado de máquina, detecção auxiliada por máquinas é usada na ciência e na medicina para ajudar a interpretar exames há décadas, o filtro de spam na sua caixa de e-mails é uma IA desde os anos 90, o algoritmo de rede social quando você usa o Instagram ou YouTube é uma inteligência artificial desde os princípios da mídia social, e toda noite milhares de gamers enfrentam inimigos artificialmente inteligentes em seus computadores.
Mas se IA é tão antiga e tão comum, o que mudou?
Bem, em Novembro de 2022, as portas foram abertas para o público brincar com o ChatGPT.
O que o ChatGPT faz, no fim das contas, não é nada especial: Ele pesquisa o banco de dados da internet, e retorna resultados. E por muitas vezes estes resultados são inferiores aos que seriam encontrados usando um mecanismo de busca mais tradicional (que aliás, também usam de aprendizado de máquina!)
O triunfo do ChatGPT é um triunfo das aparências: O ChatGPT é capaz de interpretar pedidos escritos em linguagem natural, mas isso o Google já fazia há alguns anos (eu sou velho, me lembro de quando eu aprendi a usar o Google, e um dos ensinamentos era cortar preposições e outras partículas linguísticas afins para conseguir resultados melhores, I.E.: Pesquisar “bolo chocolate receita” ao invés de “receita de bolo de chocolate”). O que o GPT trouxe de novo é que ele também é capaz de responder usando algo que se aproxima de linguagem natural. Ao invés de te apresentar o link de uma página externa com o resultado, ele realiza uma paráfrase, aparentando, então, que você está “conversando” com o computador. Você pode até pedir para ele “escrever” coisas para você, e de fato, muita gente tem feito isso – Em verdade, o programa não está escrevendo nada, ele está realizando o mesmo trabalho de pesquisa e paráfrase, mas ele é bom nisso. Bom o suficiente para “convencer”.
O resultado, então, é que o ChatGPT parece ficção científica. Ele parece algo que nos foi prometido em seriados como Jornada nas Estrelas, em cartoons como Pokémon, um computador ao qual você só realiza um pedido educado, e ele realiza todo o trabalho em seu cérebro eletrônico, respondendo de forma quase conversacional. Um computador capaz de identificar um animal só de você apontar a câmera para ele, e retornar informações científicas sobre este animal.
A questão é que ficção científica é – Ficção. O computador de Jornada nas Estrelas responde às perguntas do capitão como se fosse uma pessoa porque ele é uma pessoa. Uma atriz instruída a ler um roteiro de forma monótona. A Pokéagenda identifica os animais mágicos perfeitamente para o Ash porque ela é uma ferramenta narrativa para introduzir o bichinho sobre o qual a história do dia vai ser.
A questão, no entanto, e talvez o cerne de IA estar “na moda” com investidores ao mesmo tempo que é cercada de escândalos e rejeitada por uma fatia enorme do mercado consumidor, é que em muitos casos, a tecnologia do mundo real não se parece com a “tecnologia” da ficção científica tão simplesmente porque na vida real é mais prático não parecer. A “aparência de ficção científica” é boa para impressionar, para ser mostrada em um vídeo, pra conseguir a atenção de investidores e aparecer nas notícias – Mas em muitos casos, na prática, só faz mais sentido fazer algo sem graça mas que resolve os problemas de forma eficiente.
Um Gundam é uma criação muito legal, um robô humanóide gigantesco que faz ‘guerra’ parecer algo divertido e excitante. Mas ele não é real, ele não vai nunca ser real, e não vai porque não precisa.
Porque em uma guerra de verdade é mais eficiente, mais fácil, e portanto, mais prático, construir um tanque, que vai servir o mesmo propósito de “permitir que soldados avancem para cima de território inimigo protegidos por uma camada grossa de metal”, sem precisar de toda a dificuldade envolvida em fazer essa camada grossa de metal parecer um ser humano. E no fim das contas, o robô gigante da TV só parece um ser humano porque quando as tradições da TV se estabeleceram, o jeito mais fácil de fazer um “robô gigante” era uma pessoa fantasiada andando em uma maquete.
Não se confundam, a tecnologia de processamento de linguagem do GPT, bem como a de processamento de imagens do Dall-E/Stable Diffusion é uma tecnologia impressionante, e cedo ou tarde, ela vai achar um nicho onde ela é realmente útil – Mas o boom de investimentos que leva pessoas a investirem até em IAs falsificadas, isso tem data pra acabar.
Escrito por Vitor Germano para o Maringá Post
Sugestões? Críticas? Perguntas? Fale comigo no e-mail [email protected]
Comentários estão fechados.