por Vitor Germano
No clássico das irmãs Wachowski, Matrix, o protagonista Neo (Keanu Reeves) recebe a escolha entre duas pílulas, uma que o coloca para dormir, e uma que inicia o processo de seu “despertar”.
Essa cena, e de fato, a metáfora da “pílula vermelha” foi reinterpretada de milhares de formas diferentes, algumas mais alarmantes que outras, mas uma interpretação comum é dela ser sobre o custo da liberdade.
Ao descobrir o que é a Matrix, Neo conquista sua liberdade, mas também descobre que viveu uma vida construída em cima de mentiras, e que tantos outros estão presos neste sistema, sem a capacidade ou sequer o desejo de escapar. Diz Morpheus (Laurence Fishburn) “a Matrix está em tudo. Ela nos cerca. Até aqui, nesta sala. Você a vê quando olha pela janela, ou quando liga a televisão”
Talvez não vivamos em uma simulação, construída para nos distrair, por um império robótico que nos usa como processadores e fontes de energia – Mas a cada ano, nossa vida é cada vez mais mediada pela tecnologia. E apesar de nos inserirmos nessas tecnologias e colocarmos nossa confiança nelas, são poucos entre nós que sabem o que está acontecendo por trás das cortinas. Isso não é acidente: Seu desconhecimento é, em muitos casos, o lucro de alguém que nem sempre é bem-intencionado.
A seguir, compilamos 5 fatos que você não sabia, relatando “maldades” que a indústria tecnológica está fazendo com você, neste momento.
1. Tudo o que você escreve no Google Docs pertence a você… E à Google. E às empresas terceirizadas que trabalham com a Google.
É isso mesmo! Tudo o que você coloca no Google Docs não só está hospedado no computador da Google, mas ao usar a coleção de programas, você implicitamente concorda com um contrato de termos de uso. Isso, por si, é normal: Todo programa de computador tem um contrato assim. (quem nunca instalou um programa apertando “avançar avançar aceito aceito”?)
Mas no caso dos termos de uso do Google Drive, há várias frases enterradas no documento, que colocam em questão a propriedade intelectual do usuário sobre o conteúdo que lá é hospedado, bem como o uso que a empresa faz destes dados.
Ao mesmo tempo em que inicialmente o documento diz “Não reivindicamos a propriedade sobre seu conteúdo,”, mais a fundo, em outro arquivo, que requer seguir meia dúzia de links para achar, a licença diz –
Esta licença permite que o Google: >(…) modifique ou crie obras derivadas do seu conteúdo, por exemplo, reformatando ou traduzindo-o; sublicencie esses direitos para: outros usuários de modo a permitir que os serviços funcionem como planejado, por exemplo, ao ativar o compartilhamento de fotos com as pessoas que você escolher; nossos prestadores de serviço que assinaram contratos conosco de acordo com estes termos, apenas para os fins descritos na seção Finalidade, disponível abaixo. |
Em outras palavras, seu conteúdo é “sua propriedade”, mas a Google se reserva no direito de alterá-lo, criar obras derivadas dele, e sublicenciar estes direitos para empresas terceirizadas.
2. As redes sociais exploram sua psiquê para te manter online… E podem estar fazendo coisa pior.
Isso é algo que, se você não já sabia, provavelmente já chegou a pensar: O feed do seu aplicativo de rede social favorito, seja este o Instagram, o Facebook, o X(/Twitter), ou qual outro que for, parece ser uma armadilha para a mente. Um buraco sem fundo onde seu tempo desaparece e sua atenção parece ser “roubada”.
Isso é uma observação correta: O feed de redes sociais é projetado para te manter online. Com sua rolagem infinita (sem ter que clicar em ‘próxima página’ como era em tempos idos) e capacidade de buscar conteúdo não só das pessoas que você segue, mas de toda a rede por meio de algoritmos avançados, ele é, por admissão das empresas que operam estes serviços, projetado por mentes brilhantes especificamente para fazer com que você perca a noção do tempo e fique lá por horas e horas e horas.
Se ser um “ladrão de atenção”, projetado deliberadamente para te deixar perdido dentro dele não é suficiente, alguns anos atrás, um estudo científico comprovou que o algoritmo do Twitter (agora X) tinha uma tendência a servir conteúdo que “amplificava raiva, animosidade, e polarização”. Na época, a empresa recusou-se a comentar.
No entanto, pessoas observaram que outros feeds, de outras redes, também tinham uma tendência a oferecer conteúdo “provocador”, misturado no meio de outros conteúdos mais agradáveis.
E de fato: Se você já esteve em uma briga de internet, sabe que essas tendem a envolver voltar à página várias e várias e várias vezes. Rendendo engajamento para a plataforma.
Claro, não há pesquisas científicas para todos os feeds de todas as redes, mas a coisa a se lembrar aqui é que no final das contas, a empresa por trás da rede social não se importa se você está gostando de navegar a rede, ou se ela tem um efeito positivo na sua vida, só se importa se você está online, e se você está engajando com os conteúdos.
3. Usa pacote Adobe original? Você pode estar treinando seu futuro substituto no mercado de trabalho.
A IA generativa está aqui para ficar, infelizmente ou felizmente. E há muitos empregos que vão ser varridos do mapa pelos avanços dela. Ou pelo menos, é isso que a indústria tecnológica diz que vai acontecer. Não faremos previsões aqui.
O fato é que a tecnologia de IA é inteiramente dependente de acumular dados para “treinar” o algoritmo. Todas as empresas no ramo de IA têm obtido seus dados de treinamento de várias formas, cuja ética pode ser discutida, mas em especial –
O pacote Adobe, usado por tantos profissionais criativos, é uma coleção de ferramentas sem comparação. Desde o começo deste ano, a Adobe adicionou uma função em seus programas que coleta dados de uso do programa para treinar seus modelos de IA.
De acordo com a empresa, eles não usam as imagens que o usuário está trabalhando diretamente, mas usam padrões de comportamento de usuário e de uso do programa para o treino de seus algoritmos.
No entanto, se você é um profissional que não está confortável com o conceito de ter seu trabalho apropriado pela ferramenta que você está usando, vale a pena saber que você pode, nas suas configurações de conta, desabilitar estas coletas de dados.
4. O seu celular não está ouvindo suas conversas privadas… Mas é porque ele não precisa.
Talvez isso já tenha acontecido com você: Você está falando de um assunto aleatório com alguma pessoa da sua vida. Mais tarde, você pega seu celular para fazer alguma coisa, e vê um post de rede social, ou propaganda, ou oferta de um aplicativo de compras – Oferecendo algo estranhamente relevante ao assunto do qual você estava falando. Quando isso rola, é fácil suspeitar que o seu celular está te ouvindo. Gravando suas conversas para mostrar propagandas depois.
Se você já temeu isso? Relaxe: Seu celular não liga o microfone para ficar te escutando.
Mas isso não é porque eles são bonzinhos. É porque eles não precisam e jamais precisaram. Seja seu aparelho um iPhone (que relata coisas à Apple) ou um Android (que relata à Google e também à Amazon), a todo momento ele sabe:
- Onde você está com uma precisão de cerca de três metros, e se você está em proximidade de outra pessoa que também tem um celular, ele pode averiguar que vocês estão perto um do outro
- Todas as páginas que você visita, aplicativos que você usa, e cada ato que você está realizando ao navegar por estes sites e serviços
- Tudo o que você digita, que passa pelo “teclado”, que nada mais é que outro aplicativo, e vai aprendendo como você escreve
Com esses dados, a empresa é capaz de cruzar informações e saber: Sua idade, seu gênero, quantos idiomas você fala, seu nível de educação, em qual ramo você trabalha, se você é solteiro, casado, ou namora, se você tem filhos, tem casa própria ou mora de aluguel, além de uma grande lista de coisas que ele considera “seus interesses”.
Em outras palavras: Seu celular não liga o microfone para te escutar porque isso seria ineficiente, muito mais coisas para processar, e eles não precisam nem jamais precisaram disso para gerar um perfil extremamente preciso da sua pessoa.
Você pode inclusive ver o perfil que o Google tem de você, usando este guia.
Teoricamente estes dados são coletados com um propósito só: Te mostrar anúncios. Mas…
5. Publicidade e Propaganda
E até aí, você pode dizer “tudo bem”. Afinal: A Google é uma empresa privada, precisa ganhar dinheiro, e em troca da informação que é coletada, eles te dão todos esses serviços convenientes de graça. Sabe do que mais? Justo. Justíssimo na verdade.
Mas e quando você está pagando pelo serviço, e caro, e mesmo assim tem seus dados coletados e usados para publicidade?
Este é o caso no Windows. Desde sua décima iteração (que na verdade é a nona, mas por razões técnicas se chama 10–), o sistema operacional da Microsoft coleta dados de uso, do mesmo jeito que o Google faz. Inicialmente, eles disseram que o propósito desta coleta de dados era “telemetria”, ou seja, eles seriam coletados para ajudar a melhorar a funcionalidade do sistema.
Bem, em tempos recentes a Microsoft tem falado de colocar publicidade direcionada no menu iniciar do Windows 11. (artigo em inglês)
Windows não é gratuito, nem de longe. É um produto caro, embora na maior parte dos casos, você não perceba isso porque paga por ele junto ao preço de seu computador.
Mas bem. Publicidade não está nem aqui nem ali: Quem se lembra da época que a TV governava o mundo, sabe que canais de TV são 65% publicidade por m³. E irritante que seja, ela é, pelo menos teoricamente, inofensiva.
Na faculdade, a gente aprende a diferença entre “Publicidade” e “propaganda”. Para não ficar dando uma aula aqui, o resumo é que – “Publicidade” está tentando te vender algo. Uma empresa paga para colocar seu produto em público para atrair consumidores. “Propaganda” não está te vendendo um bem, está te “vendendo” uma ideia. Propaganda pode ser política em cunho. Pode manipular como você pensa.
Alguns anos atrás, a China, um país ditatorial, chamou atenção do mundo ao implementar um sistema de “crédito social”, que usa de dados coletados dos hábitos de internet dos cidadãos para rastrear o comportamento deles, e recompensar aqueles que agissem de formas que o governo aprova. Cidadãos com alto crédito social têm regalias a mais.
A parte que as manchetes convenientemente omitem sempre que falam do sistema chinês é que o governo da China não o criou do nada. Em verdade, os dados usados pelo sistema são coletados pelas gigantes tecnológicas Alibaba e Tencent (pense nelas como Amazon e Google da China, a China tem uma ‘internet’ totalmente separada do ocidente), e originalmente eram para, veja só, vender publicidade. O governo só fez assinar um cheque para as empresas, como qualquer outro cliente, e conseguiu a base de dados para seu sistema de vigilância em massa.
Mas há algo a fazer sobre isso?
Falamos aqui de um monte de coisas assustadoras e alarmantes sobre o mundo da tecnologia, e deixamos claro que esta não é uma lista exaustiva, é só o que houve tempo para pesquisar e escrever.
Mas afinal, você ainda depende da tecnologia para seu estilo de vida, não depende? Ela ajuda você a trabalhar e a encontrar seus interesses.
Então a pergunta, como em muitos casos, acaba sendo, “mas tem alguma coisa que eu posso fazer sobre isso?”
E a resposta é surpreendentemente, sim! Há algumas coisas relativamente simples que você pode fazer para se proteger. Aqui algumas dicas:
- Aprenda a gerenciar as permissões dos seus aplicativos de celular.
O sistema operacional do seu celular tem, em suas configurações, opções que podem bloquear que aplicativos tenham acesso a dados como localização, câmera, microfone, etc. Saber o que essas permissões significam e estar de olho em quais aplicativos podem fazer o quê não é uma bala de prata que vai te levar a um mundo novo de privacidade, mas certamente ajuda. - Desconecte… Quando possível.
Às vezes, você precisa de um serviço, e você não vai re-estruturar toda a sua vida pessoal e profissional por conta de uma coisinha. Mas às vezes você tem a opção. Considere usá-la.
Pergunte-se o seguinte: Se o que você está fazendo é apenas redigir um documento de texto, e você não vai usar da colaboração em tempo real ou do compartilhamento de pastas que o Google Drive oferece, você precisa usar o Google Docs? Você podia baixar LibreOffice no seu computador, que também é gratuito, mas não coleta dados e mantém os arquivos no seu drive local, onde só você e aqueles com quem você compartilhar podem vê-los.
O mesmo vale para o pacote Adobe: Embora as funções avançadas dos aplicativos da Adobe realmente não tenham comparação, em muitos casos, você não está usando estas funções. E para coisas menos mirabolantes, há dezenas de ferramentas, tanto comerciais quanto gratuitas, que respeitam os seus direitos, e você pode surpreender-se com a qualidade do trabalho que é possível realizar com elas.
- Use de recursos da comunidade.
Há milhares de pessoas no mundo que também se preocupam com as coisas mencionadas aqui, e essas pessoas às vezes fazem esforços comunitários para ajudar umas às outras. Considere, por exemplo, tosdr. Uma base de dados que traduz o “juridiquês” impenetrável dos contratos de serviço da internet para uma série de tópicos facílima de ler. Ou decentraleyes, um plugin para o seu navegador de internet que detecta scripts e outras coisas usadas por serviços para rastrear o que você está fazendo, e os bloqueia. - Educação tecnológica em geral.
Estas empresas se beneficiam de tudo o que você não sabe. Para eles, quanto menos você pensar no que está por trás das cortinas, melhor. Então sua melhor “arma” é sempre se manter informado. Sempre questionar quando algo parece bom demais para ser verdade, e quando coisas lhe desagradarem, pesquisar se você tem alternativas, porque em muitos casos, você tem. - Modo avançado: Aprenda a usar Software Livre de Código Auditável
Sistemas operacionais Linux, navegador Mozilla Firefox, LibreOffice, GIMP – Todos estes são exemplos de programas de Software Livre. Programas de computador cujo código é desenvolvido comunitariamente, e é de domínio público. Estes programas são mais seguros por padrão porque o código de programação deles é auditável por qualquer pessoa com conhecimento para tal, e portanto, constantemente verificado e corrigido pela comunidade. Listamos este como “avançado” porque, é claro, requer aprender a usar novas ferramentas, ferramentas diferentes. E nem todo mundo tem o tempo para isso.
Escrito por Vitor Germano para o Maringá Post.
Mande-me suas perguntas tecnológicas no e-mail [email protected]!
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