Em novembro de 2010, quando o gestor cultural maringaense Miguel Fernando Perez Silva, aos 26 anos, lançou o livro “Sala dos Suplícios – O Dossiê do Caso Clodimar Pedrosa Lô”, depois de passar dois anos debruçado sobre amarelados documentos, caçando depoimentos, escrevendo e rescrevendo o que descobria, não imaginava que os 400 exemplares da primeira edição seriam esgotados em apenas duas semanas.
Agora, no último dia do mês em que a tragédia do garoto nordestino completa 50 anos, Miguel Fernando lança a segunda edição, enriquecida com um anexo de documentos históricos. Um deles, por exemplo, é o relatório do capitão Luiz Gastão Richeter, que narra em detalhes a saga da perseguição, no interior do Maranhão, aos dois soldados que torturaram e mataram Clodimar Lô, presos em 1968, um ano após a barbárie. Depois, fugiram.
A solenidade de lançamento da nova edição do diretor executivo do Instituto Cultural Ingá será no dia 30, às 19 horas, no Auditório Dr. Miguel Kfouri Neto, na Associação Comercial e Empresarial de Maringá. Miguel Fernando, que é bacharel em Turismo e Hotelaria (Unicesumar) e especializado em História e Sociedade Brasileira (UEM) e Gestão e Políticas Culturais (Girona – Espanha), também é autor de outros três livros, entre os quais “Lonas e Memórias – A História Esquecida do Circo Paranaense”.
Ao Maringá Post, Miguel Fernando cedeu um dos capítulos do livro que acaba de sair do prelo, para o leitor que não conhece provar, e para o que já leu, relembrar um pouco da triste história do pobre menino nordestino que deixou sua terra natal em busca de prosperidade nas terras roxas do norte do Paraná, onde encontrou uma morte violenta, que comoveu a cidade e o transformou em uma espécie de santo. O túmulo de Clodimar, no Cemitério Municipal, há muitos anos é o mais visitado de Maringá.
Capítulo 7
A morte veio no Jeep 28
Aquela pareceria uma quinta-feira normal como todas as outras para Clodimar Pedrosa Lô. Segundo Oésio, o menino fez todas as atividades rotineiras em casa e foi para o trabalho.
Às 16h do mesmo dia, 23 de novembro, deu entrada no hotel o já conhecido hóspede residente, Antônio Forte, cobrador da Casas Alô Brasil. Ele assinou o nome no livro de hóspedes, abriu sua pasta e conferiu os NCr$ 340 enrolados em plástico e, cuidadosamente, presos com um elástico. Clodimar repassou a chave do quarto 55 para o cliente.
Antônio seguiu até as suas acomodações, tirou a roupa e se deitou na cama, caindo no sono até por volta das 17h10. Quando acordou, vestiu-se, lavou o rosto e conferiu mais uma vez o dinheiro e colocou a pasta sobre o guarda-roupas. Saiu e foi a um bar ao lado do hotel para tomar uma xícara de café.
Antônio sentiu vontade de ler e retornou ao seu quarto para pegar um livro que mantinha na mesma pasta com o dinheiro. Ao destrancar a porta, viu a pasta aberta e notou imediatamente a falta do pacote com o dinheiro, resultado das cobranças, que deveria ser repassado para a empresa que trabalhava.
Antônio Forte bateu no quarto 57, que ficava ao lado do seu, procurando explicações. Quem o atendeu foi Luiz Carlos Dias Prado que detalhou que havia visto Clodimar Pedrosa Lô ir ao quarto 56 após sair do quarto 55.
Imediatamente, Antônio foi em busca do gerente do hotel, Attílio Farris, que por sua vez, chamou o funcionário para cobrar explicações.
Essa foi a versão de Antônio Forte e Attílio Farris detalhada para o juiz, quando questionados da suspeita de furto. Mas, seria esta a verdade do desenrolar do evento? Detalharemos a partir de agora a versão composta nos Processos Indenizatório e Criminal.
No dia 23 de novembro, após a rotina de trabalho engrenar, o funcionário de serviços gerais do Palace Hotel carregou malas, limpou a recepção, analisou a relação de hóspedes e verificou quais quartos estavam vagos para que pudesse realizar a limpeza e respectiva organização. Assim, Clodimar subiu ao primeiro, segundo e terceiro andares do prédio.
Ao cair da noite, Clodimar constatou que precisaria pernoitar no hotel devido à elevada carga de trabalho ainda pendente. Nessas ocasiões, o menino sempre conseguia uma forma de avisar Oésio. Para esse fim, ele utilizava o cunhado do tio que diariamente, entre as 19h e as 21h, buscava as roupas para serem lavadas. Naquele dia, quem entregou a rouparia para Sílvio Gonzaga foi o próprio Attílio. Mesmo estranhando o fato, Sílvio nada questionou.
Por volta das 19h, quando Lô organizava um dos quartos, recebeu o breve recado de um dos funcionários. O gerente precisava falar urgentemente com ele. Clodimar parou as atividades, foi imediatamente até a sala de Attílio, bateu na porta e entrou, sem perceber que o espaço abrigava mais uma pessoa. Era Antônio Forte, o tradicional hóspede de 27 anos, filho de Luiz Forte e Maria Forte, natural de Ourinhos-SP, cobrador viajante das Casas Alô Brasil.
Attílio dirigiu-se ao funcionário dizendo para ele devolver o dinheiro do quarto 55, pois sabiam que ele havia roubado. Clodimar olhou para Antônio e respondeu que não sabia de dinheiro algum, argumentando que tinha estado no mesmo andar do quarto, pois fizera a limpeza rotineira nas outras unidades habitacionais, mas que não havia entrado nos aposentos do hóspede residente, justamente, por estar ocupado. Forte nada disse, só ouviu Farris que retomou seu discurso e completou que existiam testemunhas do furto. Com as negativas do funcionário, Attílio acionou a polícia.
Em poucos minutos a porta tornou a se abrir, desta vez quatro pessoas, três soldados à paisana da 13ª Subdivisão da Polícia Militar de Maringá e um funcionário do hotel. Os policiais eram Manoel Gerson Maia, Beneval Merêncio Bezerra e Severino. O primeiro, cearense, nascido em Nova Floresta, 30 anos e de estatura baixa; o segundo, alagoano com aproximadamente a mesma idade de Gerson e com mais cabelo. Com relação ao terceiro personagem, nenhuma característica foi relatada.
Os policiais resolveram, sob orientação do gerente do Palace Hotel, levar o suspeito à delegacia. Durante o percurso, Clodimar foi agredido a socos e pontapés no banco traseiro do Jeep 28.
Chegaram então ao destino, a sede da 13ª Subdivisão da Polícia Militar de Maringá. O mesmo local em que o menino assistira a entrada de presos meses atrás, agora era palco de sua chegada.
O menino desceu do carro e seguiu até a seção de investigação para entrar na sala dos suplícios. Nesse pequeno percurso, seria impossível que outro policial não pudesse ver que um adolescente estava sendo conduzido à tortura. No entanto, mesmo que alguém interviesse, era pouco provável que os dois polícias interromperiam as atividades que estavam planejando. Desse momento em diante, somente Gerson e Beneval foram documentados como agressores, Severino só acompanhou o transporte do acusado.
O interrogatório teve início. Os soldados perguntaram novamente a respeito do dinheiro. As respostas ainda firmes se mantiveram iguais. A cada negativa, golpes mais fortes e precisos em locais estratégicos eram desferidos.
Os policiais se cansaram de açoitar Clodimar. Beneval armou-se com seu chicote e o utilizou no corpo do menino. Os torturadores também decidiram amarrá-lo no “pau-de-arara”. Sobre essa forma de tortura, o jornalista Henri Jean Viana, conhecido como Francês, detalha como funcionava: “(…) Era uma barra de ferro ou madeira que era atravessada pelos punhos amarrados e a dobra do joelho. Depois, colocava o ‘cabra’ sobre dois suportes, ficando o corpo pendurado a uma pequena altura do chão”. Para melhor entendimento, confira a ilustração ao lado.
Em princípio, Clodimar começou a se debater clamando por piedade e reiterando sua inocência. Mas, tiraram-lhe a camiseta e o amarraram conforme proposto.
Com Lô pendurado, houve nova sequência de socos e chutes nas costas, costelas, estômago e rosto. Depois, açoitaram seus pés.
Por volta das 21h, os soldados o retiram do “pau-de-arara”, situação que ocasionou hematomas em seus pulsos, e pisaram-lhe no peito com força extrema. Tamanho foi o impacto que a sola do coturno de um dos soldados ficou marcada na pele de Clodimar. Beneval e Gerson retiraram a calça do menino e torturaram com espetadas de agulhas seu órgão genital. A resposta para o questionamento continuava a mesma.
Não se sabe ao certo o motivo, talvez levado pelo desespero ou meramente pela esperança de ganhar tempo, mas o menino “confessou” que pegara o dinheiro. Com a revelação, os policiais indagaram a respeito do paradeiro do pacote. Com a resposta de que o item furtado estava escondido em meio às calhas de uma abertura na parede, ao lado do Banco Noroeste de S. Paulo (esquina da avenida Brasil com a avenida Duque de Caxias), na claraboia do último andar do Palace Hotel, os soldados correram para o Jeep 28.
Gerson e Beneval retornaram ao hotel, seguiram para o último andar e por lá ficaram quase meia hora. Desconfiaram que a procura estivesse sendo inútil e retornaram à delegacia. Ao chegar, abriram a porta e encontraram o menino no chão, respirando com dificuldades.
Nesse ínterim, Antônio Forte foi até a delegacia por volta das 20h30, acompanhado de Heitor Campos de Nogueira. Chegando à recepção do “casarão amarelado”, Antônio perguntou sobre o garoto preso no Palace Hotel. Pediram para que Antônio seguisse até a sala dos suplícios para ver com os próprios olhos. Ele foi até o caminho indicado. Ao chegar à seção de investigação viu, com meia porta aberta, o garoto completamente nu com uma macha parecida com sangue no peito. Logo a porta foi fechada abruptamente. Do pouco que conseguiu ver, Forte pareceu ter reconhecido os policiais que foram atender o chamado de Attílio Farris. Com a porta fechada, Beneval atendeu Antônio, pedindo para que ele esperasse no corredor. Durante a espera, o cobrador das Casas Alô Brasil ainda conseguiu ver que os PMs carregaram o suspeito ao banheiro, para expulsar o sangue que tinha na boca.
Forte, se deparando com um possível “interrogatório-espancamento”, assustou-se com tamanha atrocidade. Ele não imaginava que a polícia do interior do Paraná pudesse tratar simples casos de furtos, sem mesmo ter a absoluta certeza de o acusado ter cometido o crime, daquela forma. Vendo a impossibilidade de ajudar o menino, Antônio tentou convencer Attílio a retirar a queixa, alegando que o funcionário do hotel estava sendo torturado. No entanto, Farris disse que só retiraria a queixa se alguém fosse levado no lugar de Lô. O gerente do hotel sugeriu que o cobrador fosse a moeda de barganha na negociação com a Polícia. Antônio Forte desapareceu de Maringá. Luiz Carlos Dias Prado também foi embora da cidade, bem como Attílio Farris. Os três haviam assinado como testemunhas/acusadores do caso.
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