Destruindo blocos, reconstruindo a mente: Tetris pode ter um efeito positivo na saúde mental

A ciência sugere que este amado jogo possa ter mais valor que puro entretenimento, servindo para melhorar a saúde mental.

  • Por Vitor Germano

    Tetris é um dos jogos mais vendidos da história, criado na União Soviética nos anos 80, o quebra-cabeça digital de design simples e elegante pode ser executado até nos computadores mais básicos, o que ajuda sua penetração global: Trazido ao ocidente com versões para o GameBoy da Nintendo e para os computadores caseiros da época, hoje pode ser encontrado em consoles, computadores, celulares, web, e até em dispositivos portáteis de baixíssimo custo encontrados em loja chinesa.

    Agora, a ciência sugere que este amado jogo possa ter mais valor que puro entretenimento, servindo para melhorar a saúde mental. Especificamente: Psicólogos estão estudando se jogar Tetris pode reduzir o número de flashbacks e memórias intrusivas que afetam pessoas após uma experiência traumática, tal como assédio sexual, acidentes de carro, combate, desastres naturais, ou um parto particularmente complicado.

    A maior parte das pessoas — em média 70% — já passou por experiências traumáticas na vida, mas apenas uma fração pequena (aproximadamente 4%) vê este trauma evoluir para um Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT), um problema psicológico que causa sintomas desde distúrbios do sono a comportamentos autodestrutivos.

    Mas mesmo quando o trauma não evolui para um TEPT completo, memórias dolorosas podem retornar à mente sem aviso. Flashbacks não são apenas perturbadores emocionalmente, mas podem dificultar a concentração, o que causa problemas no trabalho ou escola. Estas memórias intrusivas normalmente se parecem com imagens ou clipes de vídeo na imaginação.

    Com isso em mente, a psicóloga Britânica Emily Holmes questionou se poderia reduzir o número de flashbacks que pessoas tinham ao dar a seus cérebros uma imagem concorrente por sua atenção pouco tempo após a experiência traumática, enquanto as memórias ainda estão se formando.

    “A mente humana não é uma câmera — Ela não imediatamente grava tudo o que nós vemos.” disse Holmes, professora de psicologia do Karolinska Institute e da Universidade de Uppsala, na Suécia. “Leva tempo, possivelmente horas, até a memória fixar-se na mente. Nosso interesse era: Há algo que possamos fazer enquanto a memória ainda está em fixação que ajudaria ela a não virar um flashback?”

    A ‘vacina cognitiva’

    Soldado do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA jogando Tetris, com um detector de metal militar no colo.
    Al-Falujah, Iraque, 2006.

    A equipe de Holmes realizou uma bateria de testes em tarefas visuoespaciais que envolvem gerar ou manipular imagens mentalmente. Tal como imaginar uma constelação ou desenhar uma imagem com padrão complexo. Um dia, um aluno sugeriu tentar um vídeo game — E Tetris era a resposta óbvia. “Ele envolve cores, ele envolve o espaço porque você tem que mover os blocos para formar as linhas e, mais importante, requer que você rode as formas em sua imaginação,” disse Holmes. “Você realmente tem que usar sua visualização mental para encaixar os blocos no lugar certo.”

    Eles começaram a realizar experimentos com Tetris — Primeiro, no laboratório, mostrando aos participantes um filme traumático, e mais tarde, no mundo real, encontrando pessoas em setores de emergência de hospitais que haviam recém passado por acidentes de carro. Em ambos os cenários, aqueles que jogaram Tetris dentro de poucas horas da experiência traumática tiveram flashbacks significativamente menos frequentes ao longo da semana seguinte, em comparação aos que não jogaram. (58% no estudo do filme, 62% no estudo dos acidentes de trânsito)

    Com base nos resultados promissores desta abordagem proativa e preventiva — que Holmes descreve como uma “vacina cognitiva” — Em seguida eles voltaram sua atenção às memórias já fixadas. “A verdade é que não vamos poder chegar à maior parte das pessoas dentro de poucas horas seguindo um evento traumático,” ela disse. “Pessoas podem ter memórias intrusivas por anos ou décadas, então é claro que precisamos fazer algo sobre estas memórias mais antigas.”

    Em um estudo, a equipe de Holmes pediu que pessoas em tratamento por TEPT se concentrassem em um flashback específico, enquanto jogavam Tetris por 25 minutos por semana por várias semanas. Ao final do experimento, participantes viram uma redução de 64% no número de vezes que essa memória retornava, bem como uma redução de 11% em memórias que não haviam sido focalizadas. Em outro estudo eles trabalharam com enfermeiros de CTI que tinham memórias intrusivas fixas — Incluindo várias de mais de três meses — De eventos traumáticos durante a pandemia de COVID-19. Após quatro semanas, enfermeiros que jogaram Tetris tiveram um décimo do número de lembranças intrusivas, comparado aos que não jogavam; Eles também relataram melhoras em outros sintomas, como insônia, ansiedade, e depressão. Em geral, enfermeiros que jogavam Tetris viram uma redução de 73 a 78% em flashbacks traumáticos.

    Holmes aponta que o mais provável é que não haja nada especial sobre Tetris em particular. Qualquer passatempo com demandas visuoespaciais elevadas — Tal como desenhar, quebra-cabeças tradicionais, criação de mosaicos, ou outros quebra-cabeças eletrônicos — Podem gerar resultados similares. No entanto, tarefas que distraem verbalmente, como ler ou palavras cruzadas, provavelmente não funcionariam tão bem.

    Tetris como ferramenta de enfrentamento

    Capa da primeira versão ocidental do Tetris, Atari/Tengen em 1988 para fliperamas, para o console da Nintendo e para Computadores caseiros

    É importante apontar que nestes experimentos, Holmes e seus pesquisadores não estão só dando um GameBoy na mão de pacientes e dizendo para que joguem Tetris. O que eles fazem é pedir que os participantes mentalizem um detalhe particularmente negativo de uma memória negativa, chamado de hotspot. E então que, durante a jogatina, mentalmente rodem as peças de jogo, chamadas de Tetrominós, enquanto eles descem pelo campo de jogo. Eles também asseguram que estes participantes joguem Tetris por uma quantidade significativa mas controlada de tempo, em geral 10 a 20 minutos. Até agora, todo o trabalho deles tem envolvido este procedimento, e os pesquisadores suspeitam que isso seja parte importante dos resultados alcançados. “Historicamente, memórias intrusivas de trauma são particularmente difíceis de tratar porque elas se prenderam à sua mente por boa razão — Seu cérebro está em alerta vermelho tentando garantir sua segurança” , diz Holmes. “São coisas dificílimas de alterar. Então se você está jogando um jogo, isso pode distrair sua mente ou reduzir seu sofrimento, mas pode não ajudar a impedir os flashbacks no futuro.”

    Mesmo assim, jogar Tetris por conta própria, sem seguir os procedimentos pesquisados, não pode te machucar — E pode até te ajudar a sentir-se melhor. A terapeuta canadense Morgan Pomells recomenda o jogo a seus pacientes como ferramenta de enfrentamento contra sentimentos de ansiedade ou hiperestimulação. Ela não usa Tetris em sessões terapeuticas, mas o sugere como uma opção para aqueles momentos em que memórias ou imagens mentais intrusivas aparecem no cotidiano. “É uma das ferramentas na caixa”, disse ela. “Muitas pessoas acham muito útil. Especialmente aquelas que têm um elemento visual forte em seus sintomas, direcionar toda sua atenção ao Tetris, mesmo que por apenas alguns minutos, permite que elas se sintam um pouco mais seguras. E quando elas retornam, estão mais calmas e capacitadas para lidar com o ambiente a seu redor.”

    No entanto, Pomells adverte, nem Tetris nem nenhuma outra ferramenta de enfrentamento substitui um tratamento. Holmes concorda com esta advertência, adicionando que pessoas que sofrem com flashbacks devem primeiro procurar tratamentos cientificamente comprovados. Enquanto Tetris pode vir a se tornar um tratamento cientificamente comprovado (ou parte de), neste momento pesquisadores ainda estão nas fases iniciais de comprovação clínica. “Essa é uma jornada da curiosidade”, conclui Holmes. “imagens mentais assombram pessoas de várias formas, e eu vejo isso como o verdadeiro desafio científico do futuro”, ela adiciona “é como ser física em séculos passados. Só agora estamos realmente vendo as estrelas e planetas, agora é questão de explorá-los.”

    Fonte original: National Geographic

    Comentários estão fechados.