Foto: Allan França
Pesquisadores dizem que a origem da cultura hip hop está relacionada com as festas organizadas no início da década de 70 por jovens afro-americanos que residiam no bairro do Bronx, em Nova York. Embora esse tenha sido um processo lento, um desses eventos é hoje celebrado como pedra fundamental. Em 11 de agosto de 1973, há exatos 50 anos, um edifício de 102 unidades, situado no número 1.520 da Avenida Sedgwick, testemunhou grande mobilização para marcar a volta às aulas.
A festa foi organizada pelo DJ Kool Herc, que comandou os toca-discos, enquanto B-boys e B-girls dançavam e os MCs agitavam o público. Não é por acaso que o edifício que sediou a agitação daquela juventude foi reconhecido em 2007 como o “berço do hip hop” pelo Escritório de Parques, Recreação e Preservação Histórica do Estado de Nova York.
Curiosamente, em menos de quatro meses, o rapper MV Bill também completa 50 anos. Enquanto o hip hop surgia no Bronx, nascia um menino negro na Cidade de Deus, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Ele se tornaria um dos precursores do movimento que, inspirado naquele caldo cultural da periferia de Nova York, acabou se instalando no Brasil a partir da década de 80. No fim do ano passado, foi apresentado seu novo álbum Dr. Drill, onde faz novas apostas rítmicas sem perder de vista a crítica social e o chamado à conscientização, marcas de suas letras.
Bill não é só rapper multipremiado, tendo se enveredado ainda por outras áreas como o audiovisual e a literatura. Junto com o produtor cultural Celso Athayde e a artista Nega Gizza, é também fundador da Central Única de Favelas (Cufa), considerada a maior organização não governamental do mundo que atua desenvolvendo projetos em comunidades. Além disso, carrega a experiência de ter integrado em 2008 a primeira formação do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), órgão composto por integrantes da sociedade civil extinto em 2016 por medida provisória assinada pelo então presidente Michel Temer.
Rio de Janeiro (RJ) – MV Bill: algoritmo esconde músicas que falam de determinados assuntos. Foto: Allan França/MV Bill – Allan França/MV Bill
Nessa entrevista à Agência Brasil, ele compartilha perspectivas construídas ao longo de toda a trajetória. Em suas respostas, o rapper revela olhar atento para transformações relacionadas à comunicação social. Ele vê o enfraquecimento do poder da TV, mas faz um alerta sobre a internet: “o algoritmo só apresenta o que mais está em voga”.
Agência Brasil – Desde o seu surgimento, o hip hop precisou lutar por espaço e hoje existem diversos festivais específicos de rap, por exemplo, o que não era comum no passado. O Ministério da Cultura propôs instituir o 11 de agosto como o Dia Nacional do Hip-Hop. Como você avalia este momento? Dá pra dizer que o hip hop garantiu seu espaço ou essa é uma luta permanente?
MV Bill – Vejo que teve um crescimento muito grande. Avançou bastante, principalmente em uma discussão que, para mim, era totalmente infundada: se o rap é ou não uma música. Acho que ao longo dos anos se provou que rap sim é música, só que tem uma forma diferente de fazer. Você pode fazer com auxílio de DJ, que aí você fica na parte eletrônica. Mas já têm inúmeras experiências que misturam o rap com banda. Eu tenho três ou quatro projetos assim. Houve um preço que a gente teve que pagar lá atrás para que hoje pudéssemos usufruir disso sem ter que ficar explicando que é música. E isso falando da música rap. Podemos também falar mais do hip hop como movimento enquanto cultura que contém quatro elementos: o rap, o DJ, o break dance e o grafite. O rap é só um desses elementos. E tem gente que ainda chama a música de hip hop. É verdade que há muitos eventos rolando, muitos festivais. Mas muitos deles que abrigam somente um dos quatro elementos que é o rap. São poucos os festivais que trazem o hip hop como um todo. Que têm dança, grafite, DJ. Falta um pouco disso ainda no Brasil. Talvez ocorra quando a gente tiver pessoas nossas trabalhando não somente na parte musical, como rappers e MCs, mas também nos bastidores, na curadoria de eventos, captando verba e sendo dono do evento. Acho que isso vai fazer com que a gente coloque o hip hop como um todo em evidência.
Agência Brasil – No ano que vem teremos olimpíadas e, pela primeira vez, o break, que é a dança do movimento hip hop, será uma modalidade olímpica. O que você acha desse movimento? Isso fortalece o hip hop ou precisa ser olhado com cautela?
MV Bill – O break dance talvez seja o elemento menos reconhecido da cultura hip hop. Falando bem a verdade, os grafites são bem reconhecidos e bem procurados quando alguém quer fazer uma pintura na fachada de sua casa. Os DJs tocam em tudo que é lugar. Tem DJ que ficou famoso no mundo inteiro. E o rap está em primeiro lugar nas plataformas. Já o break, os B-boys e B-girls não têm tanta visibilidade assim. Então, estarem dentro de uma competição olímpica vai colocá-los em evidência. E acho que em nenhum momento vai tirar a força do break que vem na rua, que é completamente diferente. Às vezes tem uma batalha de rua ou às vezes é só dançar, só exercitar o grupo ou só entrar em contato com o movimento.
Agência Brasil – A gente sabe que todo o estilo musical sofre transformações ao longo do tempo e não é diferente com o rap. Mas as letras do rap sempre estiveram muito vinculadas a temáticas sociais, chamando atenção para as demandas da periferia. Neste momento, a gente tem alguma questão específica que está mais em evidência? O rap que se faz hoje tem alguma peculiaridade que o faz ser diferente do que se fazia tempos atrás?
MV Bill – O rap se tornou conhecido. E com o conhecimento houve um pouco do esvaziamento desse discurso, na medida em que a gente tem também jovens de classe média, de famílias mais abastadas, jovens brancos fazendo rima e fazendo sucesso. E, com isso, muitos assuntos acabam saindo de pauta. Isso acontece com a questão racial e a questão da violência. Porque são jovens que não vêm necessariamente desse tipo de realidade, não convivem com esses assuntos. São temas que não estão mais tão presentes como já estiveram outrora. Isso não quer dizer que não tenha gente da atualidade fazendo bons trabalhos, trazendo essas questões. Tem, mas tem que garimpar porque senão o algoritmo só apresenta o que está fazendo sucesso e o que mais está em voga. São raps que só falam de amor, de diversão, de ostentação. Há até algumas letras denegrindo a imagem feminina. Quando eu quero fazer uma playlist com músicas que falam de determinados assuntos, eu tenho que garimpar os trabalhos atuais ou recorrer às músicas mais antigas. Mas esse é um caminho natural por conta do crescimento do rap. Eu acompanho bastante a cena norte-americana e a cena do hip hop europeu. Também vejo que eles acabaram indo nessa direção. Acho que o crescimento de qualquer movimento, de qualquer cena, acaba trazendo esse lado mais pop.
Agência Brasil – Mas o que faz com que esse seja um caminho natural?
MV Bill – Isso vai desde os contratantes que preferem os artistas que têm essa cara e essa forma mais pop. E acho que o público também tem influência muito grande nisso, na medida em que faz suas escolhas de qual artista vai ouvir. Hoje, a gente não tem tão forte a cultura do jabá, como era quando o artista pagava para tocar no rádio. Também não vivemos mais no tempo em que a música só vai ser sucesso se for trilha sonora de uma novela. Hoje, muita coisa que faz sucesso sequer aparece na grande mídia. Tem coisa que nunca apareceu na televisão e é super sucesso, como resultado do nosso like, do clique nas pessoas. Então se um grupo de pessoas pretas da favela dá um clique no artista que nunca ligou para elas, estão exaltando alguém que nunca estará preocupado com a sua questão social e racial. Acho que falta um pouco dessa consciência. Somos um público grande e forte, podemos levantar qualquer artista. Podemos levantar qualquer pessoa, qualquer influencer. Mas a falta de consciência pode te levar a clicar na pessoa errada. Tem gente na favela clicando em racista, clicando em fascista, clicando em pessoa que é contra a nossa existência. Então a gente tem que estar atento a isso.
Agência Brasil – Recentemente, o rapper mineiro Djonga respondeu a um fã nas redes sociais, após ser criticado por ter lançado um novo álbum mais leve, abordando menos temas políticos. Ele rebateu dizendo que suas músicas antigas são eternas e estão disponíveis para ser ouvidas, mas que é legal explorar outros assuntos. Existe, em alguns momentos, pressão de parte do público para limitar o rap a uma coisa só?
MV Bill – Eu já sofri muito isso, nunca levei a sério. Nunca deixei isso me interromper ou interferir na minha criatividade. Lancei meu primeiro disco Traficando Informação, em 2000. E depois, as pessoas começavam procurando em todos os discos a música Soldado do Morro. Todo disco que era lançado, a pessoa ia procurar Soldado do Morro lá. Mas não dá para fazer músicas como essa assim de uma hora para outra. Ali, eu vivi um momento específico, morando numa Cohab dentro da Cidade de Deus, quase não saía de casa. Então a minha janela virava uma tela de cinema, onde eu ficava vendo acontecer tudo aquilo que narrei. Eu tinha um tipo de vivência. E hoje nem sei se conseguiria fazer uma música como essa, cheia de verdade. Quem quiser ouvir uma letra minha como Soldado do Morro, a música está lá, em todas as plataformas. Está disponível a hora que você quiser. Mas, como artista, preciso ter a criatividade liberada para falar de outros assuntos, ou até para falar desse assunto de outras formas. No caso do Soldado do Morro, ainda fiz mais duas músicas que dialogam entre si: Soldado Morto e Soldado Que Fica. Mas sem pressão. Eu mesmo senti que dava para fazer, que era uma necessidade minha. Isso não quer dizer que eu só vou falar desse assunto. Eu tenho músicas que falam de relacionamento, tenho músicas sobre entretenimento. Acho que tem que ser assim mesmo. Mas sei qual é a minha raiz. Se você se referir a mim, não vai falar: “o Bill é aquele cara, canta a música A Noite“. Não. Você vai falar: “o Bill é o cara que canta Soldado do Morro, que canta Só Deus Pode Me Julgar“. Essa é a minha raiz. Eu sinto isso que me caracteriza. O que não quer dizer que eu também não possa ter uma música divertida como A Noite. Acho muito importante ter essa diversidade musical dentro de cada artista. Não precisa ter um artista, um rapper, que só sabe cantar música romântica ou só faça música festeira, e um outro que só faz música triste, social. Eu acho que você pode costurar e transitar por todos esses temas, sem ficar preso a um só.
Agência Brasil – Eventualmente, ouvimos pessoas tentando desqualificar uma crítica dizendo algo como “Falar é fácil, quero ver colocar a mão na massa”. E você não é um rapper que se limitou a escrever e cantar. Como ativista, você passou a liderar projetos sociais e fundou a Cufa. Qual a importância de articular o discurso com esse trabalho buscando transformar a vida de pessoas da periferia?
MV Bill – A Cufa foi uma grande oportunidade que tive de colocar em prática aquilo que estava discursando nas minhas músicas. Lá no início de tudo, com o Celso Athayde e a Nega Gizza, a gente estava fazendo algumas oficinas e aquilo foi crescendo. Como não tinha nenhum trabalho governamental capaz de alcançar o jovem da periferia, o nosso trabalho chegou como uma bomba, como grande salvação, grande território de possibilidade para quem não tinha nenhuma. Com o crescimento do trabalho, começamos a ir para outros estados. E a cada lugar, fui percebendo que a gente também foi criando novas lideranças. Logo percebi que chegou um momento em que não precisava mais estar à frente de tudo. Já tínhamos construído lideranças que poderiam me substituir. Então, hoje tem oito anos que não faço mais parte da Cufa. Continuo entusiasta da ideia, continuo amigo de todas as pessoas, mas parei para cuidar da minha vida, da minha saúde, da minha música, da minha carreira. Mas sempre participando quando posso. Vejo claramente a diferença dos lugares que abrigam projetos sociais para os lugares que não têm esses projetos. Não estou dizendo só sobre os projetos da Cufa, mas em geral. Nesses locais, a incidência do jovem indo para criminalidade é muito menor. Não estou dizendo que não tenha, mas é muito menor. Onde esses projetos não chegam, infelizmente ainda há muito jovem que acha que o tráfico de drogas é um meio de ascensão social.
Agência Brasil – Falta um trabalho mais incisivo do Estado?
MV Bill – Uma das coisas que me preocupavam muito, quando eu estava na Cufa, era a gente não parecer que queria substituir o Poder Público. E sim mostrar que existe uma lacuna na falta de políticas públicas, que eles não implementam. Ou de políticas públicas que são implementadas, mas não chegam a esses lugares. Em alguns momentos, a gente até se colocou como porta-voz, para fazer essa ligação entre as políticas públicas nas favelas, que estão necessitando dessas políticas. Em alguns momentos deu certo, mas em outros não, porque era feito pensando em voto, pensando em eleição, sempre de forma muito eleitoreira. Sou um cara que nunca fez campanha para ninguém. Sou político-social. Tenho meus posicionamentos políticos. Mas levantar bandeira para político e pedir voto nunca foi a minha onda. E dentro da Cufa, também não podia deixar que descambasse para esse lado. Sempre tomei muito cuidado pra não querer substituir o Poder Público e nem deixar que ele nos engolisse.
Agência Brasil – No seu álbum mais recente, Dr. Drill, você trata de duas questões que aparecem também em músicas de outros momentos de sua carreira: a importância de jovens da periferia valorizarem a educação e a ilusão da cultura armamentista. Qual a importância de insistir na discussão dessas questões?
MV Bill – Nesse trabalho, explorei duas novas vertentes do rap que estão bem em evidência na atualidade. Uma delas é o trap e a outra é o drill. Só que fiz à minha maneira, do meu jeito, sem voz robotizada. Para esse disco, eu quis trazer também algumas parcerias com gente jovem, que realiza um trabalho que gosto. Tem ali o Major RD, o Froid, o Lord, o Rod. E a abertura do disco é feita pelo Erik Skratch. Então, foi muito importante juntar essa galera toda, que é de outra geração e de outro momento, para trabalhar comigo. E ainda tem Rashid. Aí a gente traz esses assuntos que não estão tão em voga. Na música Aulas e Palestras, juntamos três gerações para falar da importância da escolaridade. Na música Soldadrill, a gente fala dessa ilusão dos jovens de favela, que ainda acham que ser criminoso é legal, que entrar para o crime é tirar algum tipo de onda. Quando morre, é a família que vai chorar. E quem estava junto, na situação de amigo, não vai nem ligar. No máximo, vai colocar uma camisa com a sua foto em um baile da semana, que vem pra dizer que está com saudade de você. Vai colocar uma foto no facebook. Então trazer esses temas em cima desses ritmos, além de ser uma parada interessante, mostra que estou antenado com as novas vertentes que o rap traz. E também mostra versatilidade, capacidade de rimar em vários tipos de batida e de se conectar com as novidades que estão chegando. Talvez eu seja o cara da minha geração, da old school do rap nacional, que mais fez colaborações com novos artistas. Isso é algo que carrego como um dos meus troféus.
Agência Brasil – No ano passado, você lançou o livro A Vida Me Ensinou A Caminhar, reunindo crônicas sobre suas experiências. Dá pra dizer que esse trabalho literário se relaciona com a sua produção musical de alguma forma?
MV Bill – Acho que estão muito ligados, apesar de um livro ser completamente diferente de uma música na hora da escrita. No livro, dá pra ser mais aprofundado. Mas, apesar de ser literatura, é um livro também muito musical, porque ao fim de cada capítulo tem um QR Code que te leva para alguma mídia relacionada à história que você acabou de ler. E muitas dessas mídias são musicais. E dentro das histórias, eu também cito muitas músicas. É um livro cheio de informações musicais. E que registra, deixa para a eternidade, como foi o meu começo. Como eu conheci o rap, como eu me envolvi, como me inseri na cultura hip hop. E a minha história pessoal se confunde muito com a construção impressionante do rap aqui no Rio de Janeiro. Então, o livro é interessante por conta disso. Dentro do livro, eu falo de coisas e alguns assuntos como nunca falei na minha vida para ninguém.
Para quem faz rap do jeito que faço, que é o rap história, percebe que no livro é possível ir além da música. Quando faço uma música tipo Soldado do Morro, conto a história ali dentro do que o ritmo me permite. Conto a história respeitando o tamanho da música. Agora quando escrevo um livro, o texto é muito mais solto. Eu posso me aprofundar muito mais. Eu posso ser muito mais detalhista. E tem gente que já acha os meus raps cheios de detalhes. Mas, no livro, a gente pode detalhar muito mais. E tem outra vantagem: aqui no Brasil, nosso povo é mais acostumado com músicas que têm mais melodia. E, às vezes, o tipo de rap que faço não tem tanta melodia, ele é mais falado. E não é todo mundo que tem ouvido preparado para isso. Eu conheço gente mais velha que diz que falo muito rápido, que não consegue pescar. Essa mesma pessoa, quando tem acesso ao livro, assimila totalmente o conteúdo. Então, para mim, além de ser uma forma de extravasar, acaba sendo um jeito de me comunicar melhor, mais amplamente.
Agência Brasil – Recentemente, você comentou sobre a desconfiança dos seus familiares com relação à autoria do livro.
MV Bill – É muito triste lançar um livro e os familiares questionarem se foi eu mesmo que escrevi ou se tive ajuda de alguém. Mas não levei para o coração, porque eles também não estão acostumados a ver muitos escritores pretos. Eu já li muitos escritores pretos, que gosto da atualidade. Mas o que me levou a ser um artista multifacetado foram as referências do rap. Todos os caras que eu admirava, da minha geração, se transformaram em atores, apresentadores de programa, diretores de cinema e alguns deles também lançaram livros. Então, quando vi que dava para ser rapper, mas também dava para ser multifacetado, eu falei ‘eu quero isso da minha vida’. Já tenho ideia de um novo livro para o futuro. Mas divulgar um livro é muito difícil. Não tem muito espaço na mídia tradicional. As pessoas também não entendem o livro como uma forma de adquirir conhecimento, acham que é caro. Mas, às vezes, custa o mesmo preço de um balde de cerveja. E elas não entendem que o livro também é para alimentar a mente, outra parte do seu corpo. Por isso, o período de lançamento de um livro no Brasil, ainda mais independente, pode levar até três anos. Ainda vou correr bastante para fazer mais coisas com esse livro. Mas até pelos resultados já alcançados, me deu muita vontade de começar a pensar numa sequência. Porque eu fui parar para pensar, cara, e há vários outros contos tão interessantes quanto esses.
Agência Brasil – Contornar limitações da mídia tradicional é inclusive uma das missões da Empresa Brasil de Comunicação. E você fez parte do Conselho Curador. A partir dessa experiência, como você vê hoje o papel da comunicação pública?
MV Bill – Penso sempre que a imprensa precisa ser livre, ter total liberdade. Talvez a Empresa Brasil de Comunicação seja uma das poucas oportunidades que a gente tem de dizer o que pensa, de os artistas poderem expor sua arte. É um dos poucos lugares que pode ter uma programação isenta do poder do dinheiro das grandes corporações da propaganda. Mas ela não pode sofrer interferência governamental. Tem que trabalhar com muita independência e liberdade. E inclusive para criticar o próprio governo, se for o caso. Infelizmente, o último período foi bem desastroso. No último governo, achei até que fosse acabar. Que bom que não acabou. Torço para que exista bastante liberdade para fazer um jornalismo do jeito que tem que ser: livre.
Agência Brasil – Em 2006, você produziu o aclamado documentário Falcão – Meninos do Tráfico, que retrata a cooptação de jovens pelo tráfico de drogas e traz entrevistas com alguns deles. É um documentário que aborda uma realidade social preocupante, muitas vezes é produzido pensando em pressionar pela transformação dessa realidade, em alertar para um problema, em conscientizar. Você acha que passando todo esse tempo, quase 20 anos, algo mudou?
MV Bill – Quando a gente lançou o documentário houve uma comoção nacional. Muita gente se mostrou preocupada. Mas foi uma comoção que acabou passando. Virou uma comoção momentânea. Eu acho que ali a gente, como sociedade, perdeu grande oportunidade de olhar mais para a juventude. Não tinha como tirar da criminalidade aqueles jovens que me deram entrevista, não tinha como tirar quem estava no tráfico naquele momento. Mas podia ser feito um trabalho para coibir a entrada de novos jovens, por meio de projetos. Tentar se antecipar à criminalidade. Não deixar que o crime virasse algo atrativo para a juventude. Nada foi feito. A política de guerra e de combate às drogas se demonstra fracassada, na medida em que a violência só aumenta. Não existe um plano de inteligência. Não estou nem falando de inteligência só para prender, mas para fazer com que os jovens não entrem na criminalidade. Porque uma vez que ele entra no crime, é mais difícil resgatar esse jovem. Então precisava de um trabalho governamental de muita força, para fazer com que mais jovens estivessem dentro da escola e em projetos sociais. Mas parece que não é tão interessante salvar esses jovens. E isso virou uma tarefa mais nossa, do morador, de agentes sociais espalhados pelo Brasil. Isso deveria ser uma preocupação do governo. Por isso que sou um grande incentivador de pessoas de favela e de pessoas pretas se candidatarem a cargos públicos. Como exigir de um político branco, hétero e rico que olhe para essas mazelas que existem no Brasil? Ele não vai olhar, não vai se sensibilizar. Então precisamos de mulheres pretas em cargos públicos, de pessoas de favela, de pessoas trans. Essas pessoas que sentem na pele o dia a dia.
Agência Brasil – Você já havia feito uma crítica nesse sentido sobre os impactos do filme Cidade de Deus (2002), dizendo que a comunidade ficou esquecida após o sucesso. Faltou um olhar de como transformar essa realidade social?
MV Bill – Uma das minhas críticas é que a ação policial ficou mais violenta, legitimada pela história do filme. Aquilo que foi chamado de ficção virou uma grande realidade. Quem morava naquele local – que existe e que não é um local fictício – sofreu o reflexo daquilo que foi mostrado. E parece que a mesma produtora que fez o filme está prestes a fazer uma série com o mesmo nome. Podiam colocar um nome fictício. Dependendo do que for contado nessa série, vai acabar trazendo problemas de novo.
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