Ney Matogrosso e Criolo se reencontram no palco

A intimidade entre Ney Matogrosso e Criolo não é aquela diária, de amigos que se frequentam. Ela se dá, sobretudo, por meio da arte.

  • Por Danilo Casaletti

    A intimidade entre Ney Matogrosso e Criolo não é aquela diária, de amigos que se frequentam. Ela se dá, sobretudo, por meio da arte. Foi assim desde que Criolo viu Ney de logo, fazendo uma figuração no filme Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, de 2012, do qual o cantor foi protagonista. Um ídolo que ele admirava de longe, tímido.

    Logo depois, foi a vez de Ney entender Criolo ao gravar sua canção Freguês da Meia Noite. Ao cantarem a música juntos em um show, há 10 anos, fizeram uma performance apoteótica. Criolo, com total entendimento do que era aquela parceria, xingou Ney. O cantor devolveu os insultos com o corpo e com o canto. Repetiram a coparticipação no palco algumas vezes.

    Neste sábado, 28, Ney é o convidado de Criolo em sua apresentação no Festival de Verão de Salvador, que este ano volta depois do hiato causado pela pandemia justamente com essa característica: cada artista receberá um convidado especial.

    O cantor entrará no palco para cantar pelo menos quatro músicas com Criolo. As candidatas são as emblemáticas Homem com H e Sangue Latino e duas da turnê com a qual Ney excursiona atualmente: Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua e Jardins da Babilônia.

    Em bate-papo com a reportagem do Estadão, por meio de vídeo, Ney e Criolo falaram sobre a ligação artística entre eles, divertiram-se ao relembrar a performance de Freguês da Meia Noite e sobre a relação com o público, que cada vez mais lota os festivais pelo país afora.

    Ney, quando você, no passado, cantou com Criolo a canção Freguês da Meia Noite, em uma performance no palco, ele te xingou de vários nomes, te disse impropérios. Na época, você me disse que aquilo te deu muito ‘tesão’ …

    Ney – Eu adorava (Criolo e Ney riem). Quanto mais ele me xingava, mais eu ficava excitado. Na minha cabeça, claro. Eu gosto tanto, que hoje (no dia em que concedeu a entrevista) eu fui ver o vídeo novamente. Quando ele começa a gritar aquelas coisas, eu fico rindo sozinho dentro de casa.

    Criolo – “Impropérios” …. Valorizou! Eu me sinto agora naquele palco. Eu olhava para o Ney…eu estava tão alegre, tão feliz. Eu pensava “eu sei que você (Ney) é um louco, você precisa me contar tudo”. Ele, no meio da música, disse: já, já você vai ver Quando estamos no palco e acontece essa quimera, a arte borbulha em todo mundo. É algo que não se pede permissão, acontece. E, quando vamos ver, esse palco é o lugar do abraço, dos acenos, de todo mundo. Só fiz a provocação porque me senti muito acolhido.

    Vocês tiveram um entrosamento no palco que talvez não aconteça comumente ou de forma tão intensa.

    Ney – De cara eu gostei do Criolo.

    Criolo – Isso acontece dentro de um lugar onde a gente se saca, se quer bem. Não é “vai lá e faz qualquer coisa”.

    A Elis Regina dizia que palco e cama são lugares sagrados, que temos que dividir só com quem tem muito a ver conosco. É isso mesmo?

    Criolo – Sim, nem sempre temos essa felicidade. Elis era de uma grandeza tão absurda que até para se chegar energeticamente perto dela era complicado. Não chegávamos nem nas portas dos fundos, quem dirá passar da sala para dentro até dar na “cama”.

    Ney – Tem que ter uma liga para se dividir o palco.

    Criolo, como o Ney, um artista tão livre, chegava na sua “quebrada”, ou nas “quebradas”, lugares onde sabemos que as pessoas e sua arte muitas vezes são sufocadas?

    A arte que Ney entrega ao seu povo, a arte que eu enxergo, que talvez não seja a mesma que ele emana – porque a arte de quem se apresenta é uma fração desse energética – é aquela que é possível tudo aquilo que você quer. E tudo aquilo que você quer, depois de ser visto, é liberdade. Nós já nascemos podados. Saímos do ventre da mãe, da porta do paraíso, já cerceados. E Ney é liberdade. Em qual recorte social que você quiser pegar, Ney tem tentáculos únicos que une uma malha de Brasil, nas grandes variações de Brasis.

    Ney, você se preocupava em entregar essa mensagem ao público?

    Eu sempre transgredi esse cerceamento. Nunca o respeitei – no palco, pois na vida não tenho essa necessidade. Eu simplesmente fazia, nem sabia direito o que era. Eu só não queria, no começo, ser o crooner de um grupo – estou falando de Secos & Molhados. No último ensaio, no lugar que íamos nos apresentar pela primeira vez, eu perguntei qual seria o meu espaço. Me disseram “é esse metro quadrado”. Então, eu disse: aqui vou fazer o que eu quiser. Eles concordaram, mas não sabiam o que eu faria. E eu também não. Percebi que a minha maneira chocava muitas pessoas. Eu pensava “mas vocês ainda não viram nada! Nem choquei ainda!”. Fiz barbaridades que nem sabia de onde vinham. Eu testava até onde eu podia ir. Eu era agressivo, pois, se não fosse, eles que seriam comigo.

    Você nunca teve medo do público?

    Uma vez, em um clube de São Paulo, uma parte do público começou a me xingar, antes de eu cantar Rosa de Hiroshima. Olha que hora errada! Eu fiz uma pose linda de quem diz “ah tá”. Eles continuaram. Eu mandei todos tomar no…Quando eu fiz isso, a outra parte da plateia começou a me aplaudir. Naquele momento exato eu entendi que não podia ter medo deles. Tinha o festival do Objetivo, também em São Paulo, que só tinha gente absurda, extremamente agressiva. Quando cheguei para fazer um show, eles começaram a me jogar bolas de papel. Eu virei de costas e comecei a requebrar. Um cara da plateia veio da multidão e cuspiu em mim. Eu cuspi de volta. Ele disse que ia subir no palco e me dar uma porrada. Eu cantava América do Sul, que abria o show, com uma queixada de boi na mão. Eu respondi a ele “sobe aqui que eu racho seu crânio”. Isso, hoje em dia, está muito distante de mim. O que quero é acariciar. Não quero agredir ninguém.

    E ser acariciado, como ocorre em seus shows, por todo tipo de público…

    Ney – Eu não tenho público específico. Muitas crianças vão. Muita gente de idade. Eu sempre valorizei o público mais velho. Quando eu fazia o show Destino de Aventureiro (1984) tinha uma senhora de 90 anos que fugiu de casa com o bisneto para me ver. Não tenho intenção de fazer (trabalhos) só para o público jovem. Os jovens, se quiserem, que se aproximem de mim, eles também são bem-vindos.

    Criolo – Show do Ney é vida! Alegria. Ney é revigorante. Ney tem essa coisa de atravessar o tempo. E chega nesse momento de celebrar tudo que é carinho.

    O Festival de Verão tem um público bastante heterogêneo. No mesmo dia que vocês se apresentarão, também subirão ao palco artistas como Ivete Sangalo, Gil, Caetano, Ferrugem. Como será esse show?

    Criolo – Eu me sinto agraciado justamente por essa mistura. Essa pororoca de povo que eu amo. É todo mundo junto, se abraçando. Gente é assunto, é motivo. Vai ser um calor danado. Que Salvador saiba que vai receber um encontro de muito amor. A minha presença e a do Ney contam muito sobre o Brasil.

    Ney – E na Bahia que tem um povo maravilhoso, algo que te estimula. Cantar em Salvador é uma onda diferente de tudo. Estou impressionado porque nessa volta dos shows há muitos festivais e todos eles lotados! O público está ávido por música. É maravilhoso estarmos de novo em um Brasil mais solto.

    AE/Foto: Felipe Panfili

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