Por Fernando Rodrigues de Almeida
Se há uma introdução reveladora é a abertura da obra Humilhados e Ofendidos de Fiódoer Dostoiéviski, em que o narrador, Ivan Petróvich, aparece, como segundo ele mesmo, de mau grado apresentar sua memória no último e penoso ano de sua vida.
Ivan, nesse início, doente, ressentido e melancólico procura um novo apartamento, menos úmido, mais limpo, mais arejado, que facilite, ou ao menos não atrapalhe, sua convalescência, no fim do dia de busca, febril, se depara e observa uma figura que o distancia de sua situação: um velho.
Ivan, sem saber explicar seu sentimento, segue o velho até um estabelecimento, cheio de alemães – lembrando que a história se passa na velha Rússia. O velho, miserável, causava repulsa e incômodo silencioso a todos no ambiente, do proprietário aos clientes, uma presença doloroso aos olhos dos demais, ainda que o velho se reclinava silencioso na cadeira e mal se mexia, apenas ajeitava seu cachorro acompanhante que se deitava aos seus pés, animal de aparência tão miserável quanto seu dono.
Ainda que o silêncio dos incomodados reinasse, não havia intuito de disfarçar, o silêncio era um recurso imposto de educação moral, pois os fregueses da confeitaria faziam o possível para evitar o velho; sentavam-se ostensivamente longe dele, a fim de lhe mostrarem a sua repugnância, entretanto o mais interessante é que o velho não a percebia.
Num furor desse momento Ivan observa um cliente que se encoraja, tomado pela angustia dos pertencentes frente ao intruso e, finalmente, desafia o velho, eis que este ultimo reduz-se a uma vexaminosa humildade e dispõe-se a deixar a sala, tendo aqui uma das citações de Dostoiéviski que me lembro bem da dor de ler, em que ao descrever os sentidos do velho diz que “era claro que o velho não só era incapaz de ofender qualquer pessoa, mas compreendia que poderia ser expulso a qualquer momento, de qualquer parte, como um mendigo”.
O velho se levanta, entretanto seu velho cachorro não, o cachorro morre, ali, sem ter a proximidade de seu dono que já levantou. Nesse momento, a consciência da culpa se volta aos incomodados, que se dão conta da inercia do velho e da morte do cão, a esdrúxula cena se vai no incomodo dos incomodados que até se oferecem para empalhar o cão, mas em um sorriso assustador, como de quem não sabe mais o significado dessa expressão, o velho se despede do local, sendo aqui o fim de uma das aberturas mais avassaladoras de um romance.
As poucas páginas da observação distante de Ivan Petróvich trazem muitas reflexões, mas creio que mais do que isso, essas páginas trazem sentimentos muito íntimos a quem lê. Mérito de Dostoiéviski e sua incomparável escrita, mas também o lugar em que estamos no sentido da vergonha, do remorso e da culpa.
A humilhação e a ofensa são postos a nós, sujeitos do mundo contemporâneo como algo a se lidar, a se acostumar. A minha geração, chamada carinhosamente de Millenials, conhece essa forma, somo fruto da cabeça baixa e do pânico ao erro. Creio que poucas gerações se submeteram tanto à coisificação capitalista quanto a minha, não pelo ardor do trabalho, mas pela culpa pelo trabalho.
Somos intermediários, nem tão sofridos quanto nossos antecessores, nem tão livre quanto os mais jovens, somos produtos de uma humildade forçada, lastro da ansiedade e da depressão gerada pela autocobrança e o medo de dizer não. Não somos o velho, somos os clientes, não somos bons de agir e, quando agimos, temos culpa, remoemos o que possamos ter causado, justamente porque ainda que não sejamos o velho, nos sentimos como o velho, pois estamos inseridos no germe da humilhação.
Parece que sempre estamos engasgados, querendo agir, mas a ação nada mais causa que agitação, essa agitação não faz da ausência da ação um fim, mas um composto, do que há dentro e o que há fora. Só sabemos falar na terapia.
Somos culpados sobre os outros porque sobre nossa humilhação sistêmica aprendemos a silenciar, a lidar, a formular justificativas. O millenial que lê essa introdução se vê em ambos os lados, na raiva dos clientes, na cabeça baixa do velho, na culpa pelo ofensa, na humilhação que impede externar o incomodo de todos os presentes, do velho, ao dono, ao cliente.
Isso pois somos cheios de remorso, e remorso não se confunde com culpa, culpa também temos, mas é um resultado, assim como a humilhação que fingimos ser normal, assim como o incomodo que silenciamos por excelência. O que nos dá causalidade é o remorso. Remorso não é culpa, remorso é palavra latina, particípio passado de remordere, ou seja, tornar a morder. Mastigar o que já devia ter sido engolido – ou ainda cuspido.
Somos sim fruto da humilhação, da ofensa do trabalho, da cobrança, da culpa pelo consumo, do capitalismo como religião. Nos submetemos, mas não por grandeza da alma, mas por pura obrigação, nosso espírito é agitado, mordemos e remordemos, ruminamos todas essas dores. Por dentro somos Ivan Petróvich, tísicos, febris, procurando um espaço mais arejado.
Foto: Editora Nova Alexandria
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