Por Fernando Rodrigues de Almeida
Se hoje o progresso é o problema que permeia meus interesses acadêmicos, no passado, quando eu mal sabia exatamente o que era um problema de pesquisa, a moral era o tópico que mais acumulei horas de reflexão.
Nietzsche era quem me guiava nessas dúvidas, talvez o autor que tive o primeiro contato profundo com a filosofia, ainda muito jovem, quando tive acesso a “assim falou Zaratustra”, achando num primeiro momento que se tratava de “simples” literatura ficcional, ledo engano.
Me deparei com esse problema que, de certa forma, apesar de academicamente eu não optar por Nietzsche, permaneceu na minha pesquisa, principalmente em uma figura arquetípica da política que se forma na estética: A teologia política.
Essa longa introdução contextual é necessária porque esta coluna reflete reflexões, e não pude deixar de refletir sobre o caso que ganhou alcance nacional nos últimos dias, que se trata do rompimento entre a artista Larissa Manoela e seus pais, e um suposto controle desproporcional dos pais em relações econômicas e psicológicas que lembram muito experiências hollywoodianas como em Macaulay Culkin, Judy Garland, Michael Jackson, Lindsay Lohan, e por aí vai.
Trauma, capitalismo, infâncias perdidas, etc. muitos são os temas relacionados que convertem a história de Larissa Manoela, mas um outro ponto me chama a atenção: a moral e a estética política-teológica que marca as nuances dessas histórias.
Teologia Política é um conceito complexo, muito maior apenas do que um modelo política ou administrativamente, tampouco apenas um conservadorismo em termos comportamentais.
A coluna (in)disciplinas, de autoria do professor Caio Henrique Lopes Ramiro, aborda o tema com frequência em suas várias formas, e lá poderão perceber que esse tema trata de todo um espectro que permeia a cultura, que tem como referência, em essência o modelo católico, mas que se seculariza para além dos muros da igreja, superando religião, e formando um método social, e um elemento desse espectro é a estética, a teologia política se encontra muito na aparência perceptível das coisas.
Mas talvez o elemento que mais permeia a estética da Teologia Política é o elemento da moral.
O caso Larissa Manoela não é algo muito original na histórica do mundo capitalista, envolve a santidade da maternidade, o capitalismo e as leis morais que envolvem a dificuldade psicológica da autonomia.
A alegação é que os pais da artista, que começa sua carreira ainda criança, controlavam, como é de se esperar os rendimentos desta, entretanto, com o passar dos anos esse controle apareceu como abuso financeiro, em que a artista era detentora de uma parte ínfima do dinheiro de seu próprio trabalho e mesmo assim era mantida em relação de dependência financeira pelos pais, mesmo após a maioridade.
Por mais que esse caso pareça simples, a complexidade moral é muito grande.
O primeiro movimento vem da forma mais pessoal possível, que é o rompimento. Em algum momento a artista se viu obrigada a romper relações com os pais, e esse rompimento tem elementos estéticos que misturam a biologia com a ideologia capitalista.
De um lado o contexto arquetípico do cordão umbilical, romper com os pais significa simbolicamente um vínculo tido como incorruptível, e ainda que seja na vida adulta, se mantém no simbólico mito biológico da ligação placentária.
De outro lado a figura da posse, da propriedade privada, elemento contratual e de capital. Se da mãe vem a ela pertence, direito natural, relação jurídica de titularidade. Mas como toda relação jurídica necessita de um elemento de validação, a forma vincular é justamente a moral.
Veja-se, a relação é jurídica, o contrato de sociedade, o repasse financeiro, os bens, o lucro. Entretanto o nexo de causalidade é a moral, a impossibilidade de imaginar a relação dos pais com filhos como abusivas.
Os pais sabem o melhor para os filhos, se diz culturalmente. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor,o teu Deus, te dá. Filhos, obedeçam a seus pais no Senhor, pois isso é justo. E é isso que se diz teologicamente.
Veja os termos: obediência, sentido moral. O Justo, sentido jurídico. Honra, sentido moral. A dádiva, aquilo que se dá, ou uma relação jurídica contratual.
Na internet, palco da δόξα libertária e da opinião sem fonte, se encontra em massa o massacre moral da artista. O inconformismo com a exposição da filha aos pais, da desonra do rompimento fraterno, da imoralidade e da ingratidão àqueles que te deram a vida. Mas se é contrato não há sempre a possibilidade de destrato?
Essa é a pegadinha, pois o contrato aqui não é regido pela vontade e, se vontade é ação, socrática e cartesianamente poderíamos conceber que vontade é o saber, se se sabe se faz. E Larissa Manoela foi cartesiana nesse ponto, soube do abuso financeiro e ao saber fez o que é racionalisticamente ético, agiu por vontade, no rompimento.
O problema que essa vontade é antimoral, moral também está no fazer, mas no fazer por estética, a estética moral, a estética da culpa e, principalmente, pelo dever moral. O saber não faz parte, mas sim o conhecer esteticamente.
O contrato entre mãe e filho, pai e filha, e assim por diante não pressupõe a vontade, pressupõe a moral, baseada no mito divinista do milagre da vida. Vida não se produz, vida é benção do imago dei. Assim, não de rompe.
A moral permanece e, diferente do liberalismo, não progride, pois céus e terras passarão mas a palavra não, e a palavra é a moral. Ainda que os pais sejam abusadores, não há imagem do divino se não há permanência no caminho moral.
Sendo assim, o contrato, o dinheiro, o lucro é somente uma consequência da assinatura com sangue. Ao romper se rompe o mito, a moral cai e a permanência se desfaz, de forma tão rápida que o desconforto moral se instala.
Veja, como pode haver relação entre o contrato, o capital e as escrituras sagradas? Pois isso também é teologia política.
Ainda que seja direito – e direito é um conceito muito liberal – incontestável, básico na dinâmica do capital moderno, afinal se ela trabalhou ela tem direito, pelo menos a maior parte, o julgamento moral supera o fundamento pressuposto do estado moderno, e o direito natural teológico se reafirma, sobre a forma moderna, mantendo sua forma, apenas apresentando-se como conteúdo.
E ainda que fundamente a violência, ou a barbárie, quem sabe até o injusto legal, se é feito segundo a moral é próprio daquele que é de bem, o sujeito justo, o cidadão de bem. Os pais só querem o bem dos filhos, mesmo que isso os custe muito caro e os faça permanentemente o mal.
E lembrando de Nietzsche, devemos ter cuidado com os bons e com os justos.
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