Por Marco Alexandre Souza Serra¹
É importante deixar claro, de partida, que as guardas municipais têm natureza civil, não militar. Mesmo assim, já estão expressamente autorizadas a usar armas de fogo pela Lei Federal n. 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais – artigo 16). Integram, operacionalmente, também por clara opção legislativa, um incipiente Sistema Único de Segurança Pública – formalmente instituído pela Lei Federal n. 13.675/2018 (artigo 9º, § 2º, VII). Essas ações refletem uma tendência crescente de depositar confiança no modelo militarizado ou de combate, especialmente através do uso de armas de fogo, como uma resposta ao desafio da segurança pública. Representam, além disso, um sério problema para nossas instituições.
De maneira mais concreta, podemos observar país afora casos preocupantes de abusos cometidos pelas guardas municipais. Tais episódios vão da intensificação das práticas de “baculejo” ou “enquadro” – jargões usados para abordagens policiais um tanto atrevidas e que normalmente consistem em deixar a pessoa suspeita com os braços e pernas abertos para buscas pessoais -, a agressões ainda mais graves, correspondentes a verdadeiras torturas. Chega-se, com frequência, a extorsões, não sem antes passar, claro, pela corrupção. Não raro se tem também assistido à aquisição de cada vez mais e maiores armamentos, a exemplo da compra de fuzis por parte da Guarda Municipal Civil de Campina Grande do Sul, no Paraná – cidade de pouco mais de 40 mil habitantes. Cuida-se, no rescaldo, de redobrada aposta na solução armamentista para o enfrentamento das mazelas do país que ostenta uma das maiores taxas de mortes violentas intencionais do mundo, com média superior a 50 mil por ano. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, 76,5% dessas mortes envolvem o uso de armas de fogo.
Empoderadas em excesso, as guardas municipais têm feito as suas se somarem às ilegalidades mais tradicionais praticadas pelas forças policiais, com a diferença, no caso dessas últimas, como veremos, de haver expressa competência legal para a execução de atividades de policiamento ostensivo e repressivo. Para as guardas municipais tampouco se identifica um sistema de controle externo, como acontece com as polícias, que têm no igualmente poderoso Ministério Público o órgão responsável pela fiscalização de sua atividade.
Nossa tradição autoritária – do mandonismo regional hoje renovado como versão atualizada do coronelismo do passado -, também demonstra a quem historicamente serve o uso da força armada, seja ela privada ou pública: aos poderosos de sempre, em prejuízo da maioria, historicamente oprimida por séculos de escravização, trabalho informal, além de diversas formas outras de dependência e exploração da energia vital e da integridade corporal do povo.
O risco já em curso, além disso, aponta para a constituição de tantas guardas armadas quantos são os quase 5.600 municípios brasileiros, confluindo para a constituição de uma ameaçadora legião de milícias locais (e legais!) prontas para eventuais sublevações contra os poderes estaduais ou central julgadas admissíveis pelo chefe de ocasião. O que assistimos acontecer quase todo o tempo no Rio de Janeiro nos impede de ignorar este perigo.
À realidade da cidade de Maringá acresce ainda um compreensível mas injustificado pavor social ante as pessoas em situação de rua – realidade que o Observatório das Metrópoles da Universidade Estadual de Maringá (UEM), periodicamente identifica e reconhece, como brevemente se verá por meio da publicação do relatório relativo à pesquisa realizada no ano de 2023. A partir desta percepção a expectativa social que se tem é que a guarda municipal se ocupe de infernizar a vida dessas pessoas já dramaticamente vulnerabilizadas, inclusive alcançando seus parcos pertences e suas reduzidas companhias de confiança, não raro animais de estimação.
Apesar da inclinação apontada anteriormente, o conjunto da legislação, para ser válido, precisa subordinar-se ao figurino que nossa principal lei, a Constituição Federal, estabelece. Para a Constituição as guardas municipais, embora também estejam encarregadas de zelar pela segurança pública (“dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, segundo seu artigo 144), têm sua atuação limitada à proteção dos bens, serviços e instalações municipais (artigo 144, § 8º). Como recentemente afirmou o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Habeas Corpus n. 830.530, exercem poder de polícia – como aliás também o fazem agentes de trânsito e fiscais sanitários, por exemplo -, mas não o mesmo poder das polícias, compreendido como aquele “poder marcado pela possibilidade de uso direto da força física para fazer valer a autoridade estatal”. Ou seja, as guardas municipais seguem podendo abordar e até prender pessoas em flagrante de crimes, desde que sua atuação esteja inicialmente autorizada pela proteção do patrimônio público do município a que pertencem.
À Lei Maior brasileira também parece que segurança traduz muito mais do que repressão armada a uma criminalidade dada sempre como crescente. Antes consiste numa espécie de pressuposto direito a ter a generalidade dos direitos respeitados. Tanto assim o é que a Constituição, antes e principalmente, trata de um universal direito à segurança já em seu primeiro parágrafo, seu preâmbulo. O mesmo acontece com a parte inicial de seus artigos 5º e 6º. Assegura, assim, a segurança como condição ao exercício do conjunto, respectivamente, dos direitos civis e sociais. Daí ser mais adequado falar de uma segurança de direitos do que de um direito à segurança.
A fusão desses diversos horizontes oferece soluções igualmente numerosas. Nem todas, porém, parecem reverenciar em mesmo grau nossa ordem jurídico-política, que tem como suas principais normas a Constituição Federal e os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos. Dentro deste cenário, em lugar de priorizar uma escorregadia segurança pública, os governos das cidades devem cuidar da segurança de direitos, necessária à obtenção de um genuíno direito à cidade, dentro do qual a segurança pública também tem lugar reservado. As eleições que se avizinham são a oportunidade para Maringá fazer a sua opção.
¹: Marco Alexandre Souza Serra é Advogado, professor na Faculdade Maringá e pesquisador do Observatório das Metrópoles – núcleo Maringá. É também doutor em direito penal (UERJ) e pós-doutor em criminologia (UNL) ([email protected]).
**Artigo da série “Observatório das Metrópoles nas Eleições”, realizada pelo núcleo maringaense do Observatório das Metrópoles, em parceria com o Maringá Post
Foto: Ilustrativa/Arquivo/PMM
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