Foto: Divulgação/UEM
A Universidade Estadual de Maringá (UEM) celebrou, na tarde de segunda-feira (18), a titulação da primeira travesti doutora da história da instituição. Lua Lamberti de Abreu defendeu sua tese no Bloco I-12 do câmpus sede da UEM e foi aprovada no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE).
Lua já havia sido a primeira travesti a concluir um mestrado na Universidade, em 2019. Ela também é graduada em Artes Cênicas pela UEM e atua como professora do Departamento de Música e Artes Cênicas (DMC). Para a conclusão do doutorado, Lua elaborou uma tese com o título “
Artes Transformistas: metodologias, linguagens e ficções grotescas em bases pedagógicas transepistemológicas”, sob orientação da professora do PPE Eliane Rose Maio.
No trabalho, a autora propõe um diálogo com três artistas transformistas – a drag queen Ginger Moon e os drag kings Don Valentim e Rubão – sobre processos artísticos, questões de gênero e formas de ensinar, aprender e experienciar uma arte que, até hoje, é muito pouco formalizada, veiculada e discutida nas mídias.
Agora doutora em educação, Lua afirmou estudar o tema desde a graduação, além de ser, ela mesma, uma artista transformista.
“Entendo que a arte transformista é edificante na história da arte em geral, mas é fortemente apagada e higienizada. Identifico nesse movimento um ato de transfobia, um ‘transepistemicídio’, entendendo como uma tecnologia trans de criação e expressão que nos é constantemente usurpada e repaginada aos interesses hegemônicos”, destacou.
Para a defesa da tese, a professora exibiu aos avaliadores uma videoarte que combina teoria com performances transformistas, de forma a criar “uma narrativa da transformação social, artística e discursiva”. A apresentação ocorreu de forma híbrida, já que parte da banca participou via Google Meet.
A professora Eliane Rose Maio, que orienta Lua desde o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Artes Cênicas, reforçou que a luta por transformação social é uma das marcas da pesquisadora.
“Ser orientadora desse trabalho, para mim, é mais um aprendizado do que um processo de ensino. Por eu ser uma mulher branca cis hétero, estar nesse contexto me traz uma certeza de que precisamos mudar as disciplinas que têm esse olhar hétero cis normativo dentro da academia. A Lua traz o olhar para as pessoas que precisam e devem ser valorizadas como todas as outras pessoas, sem sofrerem preconceitos, sem estarem mutiladas, machucadas, maltratadas, por serem do jeito que elas querem ser”, declarou.
A banca avaliadora foi composta pelas professoras travestis Dodi Leal (Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB) e Megg Rayara Gomes de Oliveira (Universidade Federal do Paraná – UFPR) e os professores Rodrigo PC Casteleira (Universidade Federal de Rondônia – Unir) e Maddox Cleber Gonçalves (Universidade Estadual do Paraná – Unespar), que participaram remotamente. Já o professor do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP) da UEM João Paulo Baliscei, que integrou a banca como suplente, esteve presente no Bloco I-12.
Pioneirismo e luta
Após cinco anos quase exatos da conclusão do mestrado, Lua se tornou, novamente, pioneira. Hoje, a felicidade da conquista se mistura a um outro sentimento, de dor, mas também de luta.
“O lugar de pioneirismo é muito solitário, é muito dolorido. É, acima de tudo, um lembrete: se demorou tanto para uma de nós chegar aqui, deve ser porque se esforçam para que a gente não caiba”, frisou. “Não posso negar que tem muita felicidade nesse título, como teria para qualquer outra pessoa que defendesse sua tese de doutorado. O ponto maior é, como as minhas ‘transcestrais’ Dodi e Megg pontuaram na minha banca, sonhar com mais travestis na universidade, doutoras, professoras, servidoras e alunas”, ressaltou.
A trajetória de Lua na UEM já dura mais de dez anos, entre graduação, mestrado, doutorado e docência. Nesse caminho, as dificuldades inerentes à carreira acadêmica se somaram a outras barreiras ainda mais desafiadoras, como o preconceito e a solidão.
“A trajetória acadêmica é cheia de desafios, especialmente sendo a primeira, muitas vezes a única (travesti), porque minha presença pedia justificativas: eu nunca pude apenas estar, apenas fazer uma aula, apenas transitar, eu precisava de todas as licenças do mundo. Por mais que no caminho eu tivesse apoio de pessoas muito pontuais, devo afirmar que minhas maiores redes de apoio não estavam na Universidade. Foram as pessoas trans, dentro e fora do câmpus, que mais estiveram comigo nesse trajeto”, relatou.
Mesmo após 12 anos de academia e a conquista do doutorado, a luta por direitos parece longe do fim. Para a nova doutora, o próximo passo é ajudar outras travestis e transexuais a trilharem o mesmo caminho.
“De verdade, meu plano é descansar, mas, infelizmente, não me parece possível no momento. Minha meta é fazer a UEM transicionar, abrir vagas, cotas e políticas públicas, afirmativas e de permanência para pessoas trans”, projetou. “Quero que as minhas estejam institucionalmente respaldadas, protegidas e asseguradas em espaços que são nossos por direito, que nos foram negados e usados contra nós”, completou.
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