Opinião: O debate sobre o aborto nunca foi moral (ou como abortar a propriedade privada)

Na coluna desta semana, mergulhamos profundamente no debate sobre o aborto, deixando de lado os julgamentos morais.

  • Por Fernando Rodrigues de Almeida

    Nessa coluna, por muitas vezes, me preocupei com as condições da moral. Moral aqui é um elemento, um objeto de reflexão. Obviamente nada original, talvez Nietzsche já esgotou esse objeto hipotético. O que faço é refletir, dentro desse elemento, sobre as coisas nas quais ainda insistimos em debater.

    O debate moral da semana é um clássico – e não estou falando da traição de Chico Moedas e o escândalo íntimo de Luiza Sonza. O debate moral da semana, de novo, é o aborto. O STF começou a votar em plenário sobre o caso da descriminalização, já tendo sido marcado por um histórico voto da Ministra Carmen Lúcia. Por óbvio, a partir disso, a sociedade passa a discutir o tema, que, em mesmo nível de clássico, é divergente.

    Mas resta a mim refletir e debater também sobre o caso. Acompanhando os argumentos somente me parece como o debate é exacerbadamente moral. Mas essa moral, que nos acompanha nesses debates, é um tanto incompleta, não tem aquele elemento socrático que considera erro moral a ausência de razão, ou aquela ideia de da diathesis aristotélica, que coloca a moral como a capacidade de perceber a emoção, que em si não nem boa nem má, apenas para aloca-la como ação virtuosa. Mal sabemos hoje o que é virtude. Ou qualquer outra filosofia moral. O debate moral atual me parece uma perfumaria que esconde interesses de discurso.

    A vida do feto, a escolha da mulher, a teoria concepcionista, as comparações argumentativas com um silogismo defeituoso e sofismático, a teologia de botequim, a vida, a vida, a vida, esse estranho antropocentrismo de ocasião. Todos esses debates, pelo que ecoa minha intuição, de duas uma: ou estão perdidos em uma narrativa de aprisionamento, ou de fato apenas querem maquiar o grande argumento real. A discussão contemporânea sobre o aborto é uma discussão sobre propriedade privada.

    E calma, eu sei que você sentiu um grande nervosismo ao ler isso, mas calma, respira, vamos continuar com o argumento.

    Dar uma roupagem moral para a propriedade não é algo novo, muito pelo contrário. Pense naquelas fábulas, contos de fadas e nas madrastas. Por que sempre má a nova esposa do pai viúvo?

    Vaidade? Rivalidade feminina? Na verdade é só a preocupação com a propriedade privada. Essa senhora que vem para colocar sua própria prole na linha sucessória e o medo do herdeiro originário de perder seu quinhão; e a imaculada virgindade, castidade matrimonial?

    Tradição de pureza? Não, mais uma vez garantia do herdeiro oficial, que não houvesse dúvidas sobre a quem recairia a propriedade herdada; e a estorinha da pequena sereia?

    Ambição? Vontade de desbravar? Amor? Não, apenas uma lição de moral sobre o local, a casta, a classe de cada um na sociedade, justamente para que a propriedade se mantenha nas mãos de quem é legitimo a ela. E daí por diante em tudo que vemos, a monogamia, o patriarcado, o machismo, o modelo de trabalho, tudo me parece elemento guardião da propriedade, assim como o discurso moral.

    Não há tanto amor pela vida de outrem, convenhamos. Na nossa sociedade? Na idade média as sentenças previam a tortura e o escárnio do réu, ipsis literis do que seria feito na execução, hoje a sentença prevê tempo, mesmo sabendo que durante esse tempo haverá tortura e escárnio. Dormimos com essa mentira, aceitamos, não achamos nada demais, e quando questionados justificamos moralmente na honestidade da propriedade privada. Não somos os maiores amantes da vida – daquela vida que não seja a nossa e dos nossos.

    Entretanto, para que nossa propriedade privada seja garantida, nós fomos obrigados a aceitar a democracia parlamentar, essa que nos dá a constituição, e que nos da direitos e garantias fundamentais, dignidade humana e direitos humanos. Claro, isso queremos. O problema é que a objetividade desse estado de direito nos traz algumas pegadinhas sobre a propriedade privada, que para que possamos contorna-las invocamos misticamente, como um necromante, o discurso moral contra o Estado de Direito.

    O argumento da descriminalização do aborto não tem nada, absolutamente nada a ver com a moral. É um debate tão seco e sóbrio quanto o mais clássicos dos documentos constitucionais liberais. O fundamento é simples: legalizado ou não o aborto existe, a diferença é que aqueles que tem acesso ao fruto da propriedade privada terão um aborto ilegal sadio e sem grandes consequências físicas, as consequências psicológicas serão tratadas em terapeutas de quinhentos reais a hora.

    Entretanto, aquelas pessoas deficitárias do fruto da propriedade privada abortarão em ambientes insalubres, com violência obstétrica, banhadas na culpa social, e correrão alto risco de perder a vida, e caso sobrevivam terão que conviver com sua psique da forma que der. Ou seja, o aborto existe, e sua consequência é essencialmente ligada a propriedade privada, querendo ou não querendo o discurso moral.

    Criminalizar, como já é, não vai inibir, mas certamente separar, como na pequena sereia o local em que cada um deve estar.

    Em tese, se existe e é um problema de igualdade material, a constituição tem que resolver, sendo reprovável ou não moralmente, é responsabilidade do Estado, o que faz do aborto uma necessidade constitucional e não uma questão moral.

    Legalizando ou não, não haverá livre escolha, tampouco planejamento familiar, a propriedade ainda demarca o patriarcado. Criminalizando ou não, não vai resgatar o fundamento teológico da vida e a constituição moderna do significado de criança.

    Pois o aborto já existe, já facilitou muito a vida de famílias abastadas pela propriedade, já dificultou muito a vida de mulheres sem propriedade. Já facilitou muito a vida do aristocrata que não queria um bastardo para influenciar na sua propriedade, já agrediu muito a mulher julgada pela assistência social e os profissionais da saúde enquanto tratava suas complicações. Já facilitou muito o empoderamento de uma classe que sempre teve escolha, e já dificultou muito a dependência de uma classe que, mesmo teoricamente livre, nunca teve escolha.

    Aborto é um debate sobre propriedade privada, o esbravejamento moral é só cortina de fumaça para fingirmos que não existem certos tipos de pessoa que não somos nós.

    E antes que me digam, mesmo depois de tudo que foi escrito, que sou a favor do aborto, não dá pra ser a favor ou contra algo que existe e tem consequência independente da lei, é um principio básico da democracia parlamentar, é responsabilidade do Estado.

    Eu não engravido para conceber os prós e os contras, mas tenho certeza que se eu engravidasse, tendo em vista minha camada social, minha cor, meu lugar, eu não teria grandes problemas se assim decidisse abortar, sendo proibido ou não, independentemente do discurso moral. Mas se eu pudesse engravidar e não tivesse as características que tenho, talvez a realidade seria um pouquinho mais cruel comigo.

    Lugar de fala só existe quando se pode falar, pra quem é invisibilizado, qualquer discurso moral emudece a voz.

    O texto é opinativo e não reflete, necessariamente, o pensamento do Maringá Post.

    Foto: Antonio Cruz/Arquivo Agência Brasil

     

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