Por Caio Henrique Lopes Ramiro
Em primeiro lugar, importa considerar que já apresentamos neste espaço ensaio dedicado a Hiroshima, que tinha a pretensão de meditar acerca de nossa forma de vida em alguma medida aproximada da proposta filosófica de Günther Anders, significa dizer, teríamos de considerar a bomba atômica e o acontecimento do dia 6 de agosto de 1945 no Japão como genuínos temas de reflexão filosófica em perspectiva ética.
Neste ensaio o objetivo se coloca mais nos trilhos de uma apresentação e sugestão leitura. Dessa forma, a perspectiva é de dar notícia do livro de Takashi Morita, a saber: A última mensagem de Hiroshima, publicado pela editora Universo dos Livros, no ano de 2020.
O autor é um sobrevivente dos horrores da Segunda Guerra Mundial e, talvez, conhecer sua trajetória se torne ainda mais importante no tempo em que há certa dose de espetacularização, pela via cinematográfica da indústria cultural estadunidense, da figura de Julius Robert Oppenheimer.
Não interessa aqui uma análise do filme lançado no ano de 2023, bastando registrar que em alguma medida o filme colabora para colocar no horizonte a necessidade de uma reflexão crítica sobre os acontecimentos no Japão e, em especial, um necessário repensar o papel dos Estados Unidos da América no fim do segundo conflito planetário.
O livro de Takashi Morita se inscreve na linha de uma literatura de testemunho, algo como aquela produzida por Primo Levi, autor já mencionado neste espaço. Morita nasceu em Hiroshima no ano de 1924, viveu em um pequeno vilarejo nas proximidades do núcleo urbano desta cidade, uma das vítimas do bombardeio nuclear. Por ofício um relojeiro, contudo, tornou-se integrante da temida e respeitada Kempeitai, a Polícia do Exército Imperial do Japão.
A obra de Morita tem no horizonte um dever de dar testemunho. Por aqui, tomamos de empréstimo o sentido do testemunho dado por Giorgio Agamben, ou seja, Takashi Morita se apresenta como testemunha em um sentido ético forte, na exata medida que se vê em obrigação de falar por aqueles que não podem. Isto é, o testemunho de Morita se mostra como potência que se torna realidade, haja vista a impotência e impossibilidade de fala daqueles que sucumbiram.
Neste sentido, se Auschwitz pode ser compreendida por Agamben como a representação de um ponto de derrocada histórica do sujeito como campo de forças que é atravessado pelas correntes historicamente determinadas da potência e da impotência, em especial no que tange ao poder não ser e do não poder não ser, não parece arbitrário compreender o autor da mensagem de Hiroshima como um sobrevivente cujo testemunho também se coloca na chave da introdução forçada do impossível na realidade.
No Japão, verifica-se no texto, há uma denúncia da existência de um ser produto do impossível, afetado pela detonação da bomba nuclear, “afinal ela se tornou meu maior pesadelo”. O experimento estadunidense fez evaporar seres humanos, isto é, com a temperatura no epicentro próxima de 1 milhão de graus Celsius, hoje ainda há “marcas no concreto de pessoas que foram atingidas pela radiação”, ou seja, foram instantaneamente carbonizadas e, também, havia “pessoas queimadas e com a pele se descolando do corpo”. Às 8h15 de 1945, “tudo se fez silêncio e escuridão, na cidade e na alma de todos que estavam ali […] poderia até imaginar que o mundo estava acabando”.
A narrativa aumenta a intensidade de seu impacto quando afirma a questão imagética do inferno, pois a situação era a de “pessoas com as roupas em trapos, a pele inteira queimada e se descolando do corpo, presa apenas pelas unhas […] O que será que aquelas pessoas pensavam e sentiam, andando daquele jeito, caladas?”. Por fim, ressalta Takashi Morita, que hoje já se tem conhecimento de que “os Estados Unidos pretendiam utilizar a população de Hiroshima e Nagazaki como cobaia de um experimento”. Por aqui, sugere-se uma boa chave para assistir ao filme de Christopher Nolan acerca de Oppenheimer.
A mensagem para os ainda não inexistentes, no entanto, não se coloca na perspectiva do ressentimento e da culpabilização reducionista dos atentados dos Estados Unidos, mas, isto sim, no caminho de uma profunda meditação sobre a guerra e o seu tempo de exceção. Para Morita, os tempos de guerra são tempos absurdos “e o pior que pode acontecer ao ser humano é ver o absurdo como algo normal. Isso nos priva de nossas maiores virtudes: amar e sentir compaixão”.
Assim, o sobrevivente da bomba de Hiroshima e residente no Brasil fez de sua vida uma existência dedicada à luta contra a guerra e pela afirmação da paz, pois conforme assevera o autor “sei que não sobrevivi ao pior dia da minha vida sem um motivo maior, então honrarei a vida até o fim – a minha e a de todos que habitam comigo este planeta”.
Nota-se que a mensagem de Hiroshima é uma afirmação da vida compartilhada e de resistência à guerra, uma vez que na dinâmica da inimizade destruímos os espaços em que poderíamos estar em convivência – na diferença -, uns com os outros; por conseguinte, afirma Takashi Morita “aprendi que nunca mais deveria pensar em alguém como um inimigo. A lógica da guerra não dá espaço para a dignidade humana”.
É preciso, portanto, recusar discursos que propõem a guerra em nome da humanidade, tendo em vista que foi a guerra quem produziu o bombardeio de Hiroshima, sendo este último, sem dúvida, um dos maiores ataques já feitos à humanidade. Logo, um testemunho da dor, talvez, mais ainda, da dor da falta de sentido, todavia, uma aposta na vida, um dever de testemunhar que nos aponta para o caminho da esperança, desse modo, uma forte recusa do ressentimento.
Foto: Sape.org.br
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