Anitta, o pioneirismo e Freud (ou quem somos nós latino-americanos sem dinheiro no banco?)

A arte brasileira é original e autência, ainda que não seja pioneira. Mas, então, de onde vem essa obsessão em querer ser o primeiro?

  • Por Fernando Rodrigues de Almeida

    Sou usuário do Tweeter (hoje chamado “X”, graças ao príncipe do anarcocapitalismo) há 14 anos, e de fato esse espaço é muito interessante para se refletir, talvez não do ponto de vista direto, porque, de fato, é um espaço tóxico, mas em sua natureza de pesadelo de Platão como o Éden da radicalidade de opiniões é impossível ignorar seus gritos.

    Foi no Tweeter (que vou continuar chamando assim) que soube sobre de mais uma de Anitta, personalidade artística que já me faz ter encantamento a partir do momento que sempre é apresentada como cantora e empresária – essa aproximação da arte com a técnica do empreendedorismo reprodutivo é um tema que me interessa, vide outros escritos aqui, como por exemplo a coluna da semana passada.

    Bem, mas de volta ao fato, Anitta, em participação no programa Saia Justa no GNT afirmou que foi pioneira no pop e teve que capinar chegar onde está e não deve ser comparada a outros trabalhos novos.

    Não é a primeira vez que Anitta se reivindica pioneira em algo, isso também aconteceu com sua indicação ao Grammy, bem como sua carreira internacional, graças a isso, alegremente e carinhosamente, recebeu da internet o apelido de Pedra Alvares Cabral¸ o que confesso ter achado de veras divertido, apesar de ser contra o deboche.

    De fato, a fala de anita irrita muita gente, afinal se formos pensar em pioneirismo temos muitos nomes brasileiros a lembrar muito antes, que provavelmente capinaram muito mais. De imediato podemos começar pensando em ganhadores de Grammys e outros prêmios internacionais, como Laurindo Almeida e Astrud Gilberto, e claro, sem deixar de pensar no disco Getz/Gilberto de João Gilberto que tirou o Grammy dos Beatles no zênite da beatlemania.

    Sobre carreira internacional muito bem consolidadas temos muito além do óbvio de Carmem Miranda, para Lenny Everson (Ilda Campos), todo o sucesso estrondoso internacional dos oito batutas, do clássico venerado de Bidu Sayão, o sucesso americano de Elsie Houston e da manauara Olga Praguer Coelho que levaram, além da musica brasileira, elementos de religiões de matriz africana para os horários nobres dos EUA, ou a febre de Ernesto Nazareth com Dengoso, trilha do clássico filme de H.C. Potter A vida de Vernon e Irene Castle, inclusive com a icônica cena de Fred Astaire e Ginger Roger dançando ao som dessa icônica música brasileira, dentre vários outros.

    E claro, a Bossa Nova, que fez do brasil um misto internacional de complexidade musical, e um cult-pop com garota de Ipanema sendo uma das músicas mais regravadas do mundo (inclusive por Anitta).

    E você pode estar pensando que não conhece nenhum ou poucos nomes dessa lista. Mas isso é o ciclo natural das artes, o marco temporal é marcado por elementos pontuais, a tendência da arte, infelizmente é o esquecimento, porém não por ser esquecido que deixa de existir.

    Mas vou ser bem sincero, o que me incomoda não é o fato de quem é o pioneiro, mas a obsessão cultural de ter de ser o primeiro. No Brasil temos um culto ao pioneirismo, bandeirantes, desbravadores, fundadores, etc. todos esses com histórias bem questionáveis de pioneirismo. E é justamente esse o ponto, esse não é um problema da Anitta, é um problema nosso. Por que o desejo de ser o primeiro?

    Somos, como entendimento de sociedade, um local colonizado, que sempre olhou com olhos de espelhamento cultural para o velho mundo europeu, que sempre olhou com olhos de cobiça para o empreendimento capitalista dos EUA, ao mesmo tempo nunca olhamos para os povos originários, verdadeiros pioneiros, em sua medicina pioneira, em sua culinária pioneira, em sua arte pioneira, na verdade a esses pioneiros restou a imagem de bárbaros incivilizados.

    Pois bem, fizemos nossa opção sobre qual olhar teríamos sobre nosso meio, entretanto esse olhar nos fez sempre produtos secundários do pioneirismo alheio. Obviamente, e freudianamente isso é traumático, e a projeção tinha que acontecer mais cedo ou mais tarde, de forma que nossa ânsia pelo pioneirismo faz do nosso complexo de Santos Dumont um eterno amedrontado sobre não ser original.

    Com isso tenho que retornar a Anitta, com todas as escusas que não tenho nada contra a cantora, creio que existe sim arte na sua obra, mas que reivindica o pioneirismo de levar ao mundo o funk sem tocar funk, um produto que, usa elementos de fora, mas que na sua absorção de não ser pioneiro se torna tão original a ponto de sê-lo, isso é cultura.

    Para, segundo a própria Anitta, atingir o mercado internacional, é necessário se render ao reggaeton, elemento não pioneiro mas original da américa central, por ser mais palatável ao estrangeiro, ou ao pop moderno, de origem alienígena daqui. Ora, mas a MPB e Pixinguinha não fizeram sucesso com os sons daqui? Nós não consumimos os sons de lá sem nenhuma adaptação? Sim, mas o problema é a ânsia pelo pioneirismo, pela originalidade.

    Nossa arte latino-americana não é pioneira, justamente porque é sincrética, mas no seu uso de fora é original. O Sertanejo Universitário dos cantores de origem metropolitana estão entre o Country e o Sertanejo Clássico, mas é próprio daqui; as versões de musicas estrangeiras traduzidas de rock com a percussão de forró não é pioneira, mas é original e próprio daqui; o Axé traz a guitarra e a influência de matriz africana, nada daqui, mas próprio e original daqui; ou ainda o próprio funk como eu já tinha dito antes, dentre muitos outros.

    Nós não somos pioneiros, mas somos originais, a busca pelo pioneirismo é freudiana, e por conseguinte, precisamos de terapia.

    Foto: Reprodução / Instagram

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