A arte é inútil (ou A culpa e o pudor sobre a obra do autor)

Oscar Wilde já escreveu que não existem livros morais ou imorais. Isso é porque a arte transcende o conceito de moralidade.

  • Por Fernando Rodrigues de Almeida

    A introdução do Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde tem afirmações muito reveladoras sobre o que quero dizer aqui:

    “O objetivo da arte é revelar a arte e ocultar o artista (…) Um livro moral ou imoral é coisa que não existe. Os livros são bem escritos, ou mal escritos. E é tudo. (…)A vida moral do homem faz parte dos temas tratados pelo artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. Nenhum artista quer demonstrar coisa alguma. Até as verdades podem ser demonstradas. Nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.”

    Ora, a moral é um problema para mim, como já visto antes. E mais, a moralidade intrínseca no progressismo democrático contemporâneo tem me causado certa preocupação, afinal, suas demandas estão tão moralistas, ou em alguns casos, até mais do que pudicos conservadores.

    Parece-me que a conservação chega para revelar que o liberalismo tem sua estrada no mesmo sentido moral que qualquer forma teológica de política.

    Vemos alguns debates bem moralistas no campo progressista, mas hoje vou me restringir às artes. O mesmo espectro político que, corretamente, questiona os boicotes conservadores às artes – como no famoso caso entre MBL e MAM em 2017 – é a mesma que aplaude algumas reedições de clássicos da literatura.

    Para quem não sabe do que estou falando, editoras como a HarperCollins e a Penguin vem reeditando obras de Agatha Christie, Roald Dhal e Ian Fleming para que sejam retirados termos considerados racistas ou de cunho problemático comparado com a noção atual de direitos civis e intolerância, outras obras também estão na lista, como os famosos casos de higienismo de Monteiro Lobato no Brasil.

    Mas racismo, intolerância à comunidade lgbtqiap+, machismo e misoginia, invisibilidade e antagonismo de povos originários, entre outros temas de fato não são problemas que nosso tempo vem lutando para dirimir? Sim! Então não é correto a ação das editoras? Não é bem assim.

    Por óbvio que temos o contexto histórico que, por si só, é documental e deve fazer parte do mapeamento da evolução da sociedade, mas nem esse é meu ponto aqui. Meu ponto é justamente o argumento de neutralização da arte que é típico do movimento liberal. Neutralizar para ideologicamente se acentuar.

    A neutralidade das obras de arte é uma tentativa de dar finalidade e utilidade social as obras, e não há nada mais moralista e destituinte de arte do que finalidade e utilidade.

    A arte é inútil e assim deve ser, pois ela se faz fora do racional, para além do lógico. Há uma função supratemporal na arte, que me faço obrigado a citar, como de costume, Walter Benjamin, no texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, em que o autor destaca que na arte há um Aqui e Agora que “constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo”.

    Esse Aqui e Agora tem sua função na ausência de telos, na inutilidade prática da realidade, em um plano em que o fato da responsabilidade do autor é anulado pela sua inexistência no tempo progressivo. A arte é o oposto do progresso, ela é estática e como diz Wild, no trecho que citei logo no inicio, somente podemos ver na arte em termos de juízo de valor o fato de ser boa ou ser ruim, mas não de sua utilidade social, para isso a arte não serve.

    Por pior que seja a obra, sua ressignificação é a extração do Aqui e Agora, é a teleologia comprada em favor do progresso do tempo e dos interesses da utilidade em que a sociedade se expôs pelo fato do progresso. É comparar linearmente a moral de ontem e a moral de hoje, mas sempre pela perspectiva moral, que progressivamente somente se revela destruidora e desoladora, criadora de desigualdades e reafirmadora de interesses do tempo cronológico.

    Quantas vezes a juventude progressista se faz em um procedimento religioso e pudico de se recalcar e se privar do consumo de determinada arte pela reflexão quanto ao autor. Quem é o autor? Se deve separar o autor da obra? São as perguntas que seguem a culpa do consumo.

    Isso só é possível justamente porque se Consome a arte. Pois é tudo que sabemos fazer hoje, pois o consumo é nossa oração diária sobre o cânone do progresso. Afinal, quem é o autor no Aqui e Agora da obra: é um resto. Isso porque o autor se mantém no plano real enquanto a arte está no plano do nada, fora do alcance da realidade, em um tempo não progressivo. A arte só pode ser feita de culpa e de pudor quando se consome ela no tempo.

    A arte não é moral. Ela pode revoltar, gerar sentimentos, e é o que deve ser. Ler, apreender, ouvir, assistir, uma obra de arte que impere o racismo, intolerância à comunidade lgbtqiap+, machismo e misoginia, invisibilidade e antagonismo de povos originários, entre outros temas, não faz parte do passado, muito menos do presente, quanto mais do futuro, ela está presa no seu Aqui e Agora do original, e os sentimentos que ela geral em nós, estão fora do plano do nosso material, justamente por isso que não é incomum alguém dizer que alguma obra de arte “mudou a vida”, justamente porque se dá na essência, e não se faz por objeto ou utilidade.

    Reeditar é colocar um folha nos genitais de Davi ou vestido no Deus impresso no teto da capela Sistina, com o tempo se perde a lógica e o que resta é o moralismo.

    Me parece que os progressistas que desejam moralizar a arte diante dos males históricos, tenham em si o ápice de seu progresso, pois suas posturas democráticas e progressistas entoam para mim mais um ensinamento de Walter Benjamin: esses progressistas estão formulados em sua culpa como um boneco vestido à turca com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa, pois quem controla esse boneco é a teologia, como fórmula, como método, como culpa.

    Caso você não tenha entendido a referência do Boneco à Turca, segue abaixo o fragmento da primeira tese sobre os conceitos de História de Walter Benjamin, e bem lacanianamente, corta-se do fragmente à reflexão:

    Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa.

    Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo.

    O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.

    A arte talvez seja o último meio fora do progresso, desde que esteja fora dele, no Aqui e Agora, a arte é revolucionária.

    Imagem: Freepik / Foto criada por @rawpixel.com

    Comentários estão fechados.