Negligência e violência física e/ou psicológica estão entre os principais fatores para a medida protetiva; orfandade é uma das motivações menos comuns
De acordo com um relatório da Aldeias Infantis SOS, por meio do Instituto Bem Cuidar, 32 mil crianças e adolescentes estão afastados do convívio familiar, em serviços de acolhimento.
O relatório, que trata das condições de vida e acesso à direitos de crianças e adolescentes, foi apresentado na Câmara Municipal de Maringá, na última sexta-feira (11).
Mais de 80% concentrados nas regiões Sudeste e Sul do país. A região Sul apresenta a maior porcentagem, com 44%.
Conforme o documento, a faixa etária é diversificada, sendo 25% delas com idade entre 0 e 5 anos, 27% entre 6 e 11 anos, 44% entre 12 e 17 anos e 5% com 18 anos ou mais.
O estudo, realizado entre novembro de 2022 e março de 2023, abrange todas as regiões do país, incluindo 23 estados, o Distrito Federal e mais de 200 municípios. Durante esse período, foram ouvidos mais de 350 crianças e adolescentes sob a guarda do Estado, acolhidos em casas lares e abrigos públicos e de organizações não governamentais.
“Nosso objetivo com a pesquisa é difundir vozes de crianças e adolescentes em acolhimento, da juventude egressa desses serviços e famílias que estão em situação de risco de perda do cuidado parental, a fim de contribuir e qualificar o sistema de atendimento e os poderes públicos”, destaca José Carlos Sturza de Moraes, coordenador geral do Instituto Bem Cuidar.
Segundo o especialista, a pesquisa revelou que muitas das dificuldades enfrentadas pelas famílias vulneráveis no cuidado parental estão relacionadas à ausência de políticas públicas adequadas, fazendo recair uma injusta culpabilização sobre grande parte delas, especialmente econômica.
Um dado que chama a atenção é a verificação de que quase 40% dos jovens entrevistados estiveram em situação de acolhimento por mais de 18 meses, período superior ao estabelecido pela legislação brasileira. Entre esses casos, meninos e aqueles que se autodeclararam negros foram os mais afetados. Além disso, cerca de 60% dos entrevistados viveram em mais de um serviço de acolhimento.
Outro aspecto relevante é o alto percentual de crianças e adolescentes que não recebem visitas familiares, sendo que seis em cada dez acolhidos não têm esse contato. Por outro lado, foi constatado que a maioria (56,14%) recebe atendimento psicoterápico individual e cerca de 13,16% relatam interesse em receber apoio psicológico. Entretanto, não o recebem.
O relatório destaca ainda a importância de abordar de forma abrangente a saúde mental e o bem-estar dos jovens em serviços de cuidados alternativos. Além dos sintomas emocionais frequentes, como tristeza, irritação e preocupação, que podem afetar seu estado emocional, o desempenho escolar também se mostra preocupante. Mais de 15% dos entrevistados afirmaram apresentar baixo rendimento escolar de maneira constante, o que indica a necessidade de atenção especial às suas necessidades educacionais.
A pesquisa identificou ainda que muitos adolescentes desejam voltar a morar com suas famílias ou, pelo menos, retomar o contato, demonstrando a importância contínua do núcleo familiar mesmo após o afastamento. No entanto, eles desejam mais. Querem conquistar condições para ajudar suas famílias, de forma protagonista e autonomia.
“Queríamos trazer para essa pesquisa as vozes das crianças, a escuta de quem realmente estará na ponta no dia a dia, para ajudar na tomada de decisões de políticas públicas envolvendo crianças”, reitera Alberto Guimarães, Gestor Nacional da Aldeias Infantis SOS, destacando a relevância da pesquisa para o futuro das crianças do país.
Jovens que deixaram os serviços de acolhimento com 18 anos ou mais também foram ouvidos, constatando a necessidade urgente de apoio e ação pública em seu processo de transição e adaptação à vida fora dos serviços de acolhimento. Alguns dos entrevistados relataram ter recebido suporte adequado em suas transições e após saírem, enquanto outros descreveram uma completa falta de apoio.
Negligência
A negligência foi apontada como o motivo mais comum para o acolhimento de crianças e adolescentes nos serviços de cuidados alternativos. Esse aspecto é enfatizado pelos profissionais e autoridades entrevistados, que questionam a validade do termo negligência, quando associado à incapacidade das famílias de cuidarem adequadamente de seus filhos.
Muitas vezes, as situações de negligência estão relacionadas à falta de acesso a políticas públicas básicas, como ausência de vagas em creches e insegurança alimentar.
Na análise, que utilizou uma escala de 0 a 10, negligência figurou com índice de 9,21, sendo o maior motivador de acolhimento em todas as regiões brasileiras, com maior destaque na região Sudeste (9,42). Negligência também foi o maior condicionante de acolhimento na região Sul (9,32).
Diante dessas constatações, a pesquisa recomenda a adequação dos termos empregados para diagnosticar situações de risco, podendo distinguir claramente violações de direitos, inadequações nas condutas de cuidado e agentes que violam direitos.
Essa abordagem tem o objetivo de evitar atribuir uma responsabilidade desigual entre as famílias atendidas, quando, segundo a Constituição, esse dever precisa ser compartilhado entre a família, a sociedade e o Estado.
Demais motivadores
A violência física e/ou psicológica ocupou a segunda posição com uma nota nacional de 8,27, sendo que as regiões Sudeste (8,50) e Sul (8,56) apresentaram pontuações ainda mais altas que a média registrada no restante do País.
A pesquisa mostra ainda a proximidade dos índices de crianças e adolescentes em acolhimento devido a situações de exploração sexual (5,48) e os relacionados à insegurança alimentar (5,21), indicador diretamente associado à pobreza.
Também é importante destacar que o motivo relacionado à orfandade obteve a menor pontuação, sinalizando que é uma das motivações menos comuns para o acolhimento em serviços de cuidado alternativo. Nas regiões Sudeste (3,93) e Nordeste (3,91), as pontuações foram ainda menores que a média nacional (4,15). Na região Sul (4,19), foi registrada a terceira maior pontuação.
Os resultados da pesquisa são reveladores e destacam a necessidade de uma ação urgente para garantir melhores condições de vida e acesso a políticas públicas para famílias em risco à ruptura de vínculos, melhor atendimento às crianças e adolescentes em serviços de cuidados alternativos e apoio continuado às juventudes que saíram desses serviços.
Com os resultados, a Aldeias Infantis SOS quer reforçar suas estratégias de atuação, mantendo o compromisso de promover cuidado e acolhimento para atender às necessidades desses jovens e proporcionar-lhes um futuro mais promissor.
A divulgação da pesquisa em Maringá marca a sexta apresentação regional promovida pela Aldeias Infantis SOS. A intenção é beneficiar todas as regiões, de forma a provocar reflexões positivas sobre oportunidade de melhorias no sistema de garantia de direitos. O primeiro evento ocorreu em maio, em Belo Horizonte, enquanto os próximos seguirão o cronograma a seguir:
Agosto
17 – Belém/PA
22 – Manaus/AM
Setembro
4 – Porto Alegre/RS
Foto: Reprodução / Ilustrativa
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