O marasmo da natureza – diferente do rico  – não sente tédio

Na coluna desta semana, vamos fazer uma reflexão sobre o vazio existencial daqueles que têm tudo, mas que são aprisionados pela monotonia.

  • Por Fernando Rodrigues de Almeida

    Sei que em tempos de vídeos curtos, alta velocidade de informação e baixa retenção de atenção eu estou atrasado (mas se eu realmente me importasse com isso não escreveria crônicas escritas e tampouco daria aulas de filosofia), mas vim hoje aqui, depois de maturar minha reflexão falar sobre o submarino da OceanGate desaparecido enquanto tentava alcançar os destroços do Titanic à quase 4km de profundidade na costa canadense;

    Espero que todo esse tempo tenha também te dado a calma da reflexão, porque esse caso é precioso para isso.

    Não estou aqui para falar da seletividade midiática que enquanto outro navio com refugiados afundava e matava centenas de indesejáveis sociais do padrão burguês, se falava mais de menos de meia dúzia de bilionários que se colocaram na situação maluca de se afundar em um mar gelado, isso muita gente já falou e certamente eu falei com alguém também várias vezes nos dias que se passaram.

    Mas, isso não impede que eu não fale alguma coisa sobre o estilo de vida dos super-ricos, apesar de não ser o foco. Afinal, o foco de verdade é a ironia que a aleatoriedade da natureza representa.

    Sou muito fã de “Senhor dos Anéis” e todo seu legendário, todos nós temos nossa literatura confortável. E sim, eu sei dos problemas  de racialização que J.R.R. Tolkien tem em seus textos, mas como toda obra de literatura sempre achamos muitas coisas lá dentro. Trago essa ideia aqui porque em toda a obra de Tolkien sobre a terra média há um sonho ambientalista vivo e karmico, muito claro para qualquer leitor.

    Existe uma glorificação de um povo bucólico extremo de um lado, a demonização de um povo industrialista corrompido, que escurece a natureza, de outro, passando por arvores com consciência e sentimentos, até chegar em um – conceito perigoso aqui, mas vamos ler com foco – sujeitos “superiores”, que transcenderam a ponto de serem desenvolvidos e amigos da natureza.

    Mas mais do que isso, há uma lição que todo esse desenvolvimento dos elfos vem do retorno e respeito a tradição natural da floresta, enquanto a serventia à natureza sem desenvolvimento dos Hobbits gera neles um comportamento inocente e passivo, enquanto o comportamento dos corrompidos (Saruman e os Orcs) que desmatam, poluem e destroem vai trazer a falência iminente, de novo, kármica.

    Mais uma vez, Tolkien tem a característica de, tirando um único personagem, nenhum outro é totalmente mal ou totalmente bom, mas a relação com uma natureza viva que determina seu destino. O mais interessante disso, para mim, é a relação consigo mesmo desses personagens.

    Quase sempre ociosos mas nunca entendiados, os Hobbits passam seu tempo contemplando, deitados, fumando seus cachimbos com ervas misteriosas, só se levantam para fazer o necessário com respeito à natureza, trabalhando para aquilo que precisam, sem desperdícios.

    Os elfos, por sua vez, diante de toda sua “superioridade” estão sempre preparados para a guerra, mas ela demora séculos para chegar, e a vida destes é infinita, de toda forma, em todo o resto do tempo em que aguardam, contemplam a natureza e sua verdadeira superioridade.

    Já os corrompidos pelo poder do anel de Sauron, estão sempre entendiados, sedentos por guerra e desenvolvimento, inquietos e raivosos, sempre com fome. Se você não vê, nesse longo parágrafo o problema de Tolkien com os ricos, tivemos interpretações bem diferentes sobre os livros (e tudo bem, literatura é feita pra isso, então tá em paz).

    O que me chama atenção nessa elucubração é justamente o tédio e o ócio, dois elementos tão distintos e tão parecidos. Ambos estão ligados a inação, ao não-fazer. Entretanto, o primeiro é sempre ligado a algo natural, natural aqui quase como o natural de Tomás de Aquino, um natural da natureza, afinal a imagem do ocioso contemplador normalmente se liga ao bucólico.

    De outro lado o entediado é sempre entediado pelo externo não natural: o adolescente entediado com seu celular; o sujeito entediado com suas tecnologias de entretenimento; o tédio pelo cotidiano; ou o sempre presente tédio daquele que tem “tudo”, ainda que esse “tudo” seja apenas aquilo que o progresso (de novo isso?) provem, ou seja, o capital, desenvolvido ferozmente pelo rico, o maior entendiado de todos.

    O problema que o conflito entre o tédio e o ócio, no fim das contas, parece ter um apelo moral, tanto que Tomas de Aquino apareceu alhures. Apesar do desejo do progresso ser o da riqueza, no fim o ócio parece a resposta para o sofrimento causado pelo próprio capital, a aqueles que não tem, restando àqueles que tem o tédio sobre o esgotamento daquilo que o dinheiro compra.

    Mas me chama atenção que, para além da nossa inferioridade como seres humanos diante da natureza, o tédio dos poderosos desenvolvedores e reprodutores de capital parece ter um destino místico ou uma resposta da natureza. Explico:

    Em 1912, a empresa britânica (terra de J.R.R. Tolkien) White Star Line, construiu um navio chamado “RMS Titanic”, em seu nome se referenciava os titãs, filhos de Gaia e Urano, na mitologia, anteriores ao olimpo de força descomunal. O navio RMS Titanic, desafiava a natureza, se colocando em um patamar de “inafundável”, um marco na tecnologia da humanidade e a superação do homem frente a natureza.

    Pois bem, afundou, ao bater em um Iceberg, um elemento naturalíssimo e simples da natureza, afinal agua vira gelo no frio, o iceberg se forma sem nenhum esforço, somente precisando de água do mar e temperatura baixa, naturalmente aparecendo, diferente do RMS Titanic, que precisou de inúmeros engenheiros, funcionários, muito metal, fundição e, principalmente, milhares de libras.

    Seu objetivo era ser tão incorruptível e seguro para, no fim das contas, entreter ricos entediados, nada mais.

    110 anos depois, uma empresa estadunidense, chamada de OceanGate, criou um submarino tripulado, para, nada mais nada a menos que visitar os destroços do invencível navio vencido pela natureza. Uma tecnologia ousada que desafiava a pressão da água em grande profundidade e usava toda a tecnologia disponível, inclusive o serviço moderníssimo de internet, chamado Starlink, criado pelo outro rico Elon Musk, que desafia a natureza para acesso à internet.

    Bem, o submarino implodiu com a pressão da água, por um principio simples da natureza, pressão, que impede a vida humana nessa profundidade, coisa natural para a natureza e os seres que lá vivem, que existe de forma natural, que não precisou ser criadas por máquinas complexas e centenas de profissionais, precisou apenas ser naturalmente determinada pela profundidade.

    Quanto ao submarino, seu objetivo era ser tão incorruptível e seguro para, no fim das contas, entreter ricos entediados que podiam pagar pela viagem, nada mais.

    Dois empreendimentos, mesmo fundamento.

    O RMS Titanic e o OcenGate se ligam não só por um seguir o outro, mas sim por um seguir o destino do outro, o destino karmico do que o desenvolvimento progressista encontra quando se vê imbuído pelo tédio, ou seja, estar de frente com aquilo que é natural que, por sua vez, não se liga em nenhuma ficção ideológica como o capital e o desenvolvimento do progresso.

    Imagem: Freepik / Foto criada por @freepic.diller

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