Por Caio Henrique Lopes Ramiro
O que é a vida?
Esta é questão tão difícil quanto recorrente para muitos de nós, utilizada por Antônio Abujamra para fechar o seu Provocações na TV Cultura. Em tempos que a mídia televisiva vai cedendo espaço para as mídias sociais e, ainda, com a sobreposição de tarefas imposta pelo mundo do trabalho à nossa vida, torna-se cada vez mais raro concedermos tempo a programas televisivos.
Todavia, o presente ensaio foi provocado por recente propaganda de famoso banco espanhol em intervalo do jogo 6 entre Boston Celtics e Miami Heat, em uma noite de sábado. Antes de alguma análise da peça publicitária, apresenta-se necessário algumas linhas de meditação acerca do tema da vida, alvo do anúncio.
Não obstante, importa considerar que a questão da vida é problema que podemos chamar algo clássico em algumas áreas do saber humano, podendo ser destacadas aqui a filosofia e o direito. Este último tem a pretensão de construir um discurso jurídico-normativo acerca da vida, isto é, pretende regulamentar a temporalidade que se estende do nascimento (e até do nascituro) à morte e além (sucessão pós-morte).
Já a reflexão filosófica – especialmente a eurocêntrica -, coloca-se, a princípio, em trilha não só normativa, bem como, também, buscando uma meditação acerca de um ideal de vida boa que, doravante, será compreendida como uma ideia de felicidade que se reduz a um cálculo racional e útil a respeito de prazer e dor. Desse modo, a forma de vida no capitalismo está fortemente atrelada a concepção de utilidade, uma vez que a vida útil se torna servil a dinâmica da dominação pelo enaltecimento do trabalho.
É preciso considerar que este último compreendido como labor, ao menos nas línguas de matriz latina, está relacionado ao sofrimento e a dor, por isso era conscientemente recusado pelo cidadão proprietário na antiguidade greco-romana.
Neste horizonte de perspectiva, a utilidade da vida foi relacionada ao trabalho de maneira a se reconhecer a dignidade da vida humana por esta via – especialmente pela teologia política do cristianismo -, desconsiderando-se que já nas origens greco-romanas a ideia mesma de apropriação e propriedade está ligada a esta forma de vida.
Por aqui, verifica-se que no princípio a propriedade libera a mera vida das necessidades (biológicas) para sua qualificação livre na existência política e, doravante, há uma promessa feita – pelo liberalismo e pela economia política -, que pela via do trabalho se pode atingir a propriedade, bastando apenas o esforço individual. Logo, a apropriação se torna o centro da existência e a vida humana se reifica, significa dizer, a vida se torna uma coisa que se rende ao culto ininterrupto e fetichizante do capitalismo transformado em espetáculo.
Ainda, importa considerar que dentro da matriz eurocêntrica da reflexão filosófica, alguns dos mais importantes pensadores denunciaram a dinâmica de relação entre vida e apropriação, podendo ser citados autores como Rousseau, Marx e Nietzsche. Este último de maneira bastante interessante apresenta um argumento de crítica a esfera moral que encontra uma relação jurídico-política estabelecida entre credor e devedor.
Por esta via, Eletra Stimilli desenvolve não menos interessante horizonte de perspectiva para sua reflexão filosófica, baseando sua leitura de nosso tempo na relação existente entre débito e culpa, o que implica no reconhecimento de que a característica típica de nosso tempo é estar em dívida, isto é, caso seja possível falar em sociedade, esta última só pode ser uma sociedade de endividados.
Ora, apesar do espetáculo, em última análise, é possível notar o ponto central da sociedade do endividamento. Para a pensadora italiana, a partir da crise de 2008 é razoável compreender o modo de vida dos Estados Unidos da América como o império da dívida.
Neste sentido, ao se atravessar as luzes, imagens e sons do espetáculo em meio a mais uma crise do sistema do capital, verifica-se que o valor da vida se encontra no coração dos processos econômicos mundiais.
Todavia, não se trata de reconhecer apenas o processo de dominação biopolítica, mas, sim, aos processos humanos de formar e dar valor a vida, o que para Stimilli conforma uma economia da dívida, uma vez que esta última e o endividamento planetário são as categorias centrais das contemporâneas engrenagens econômicas mundiais.
Feitas estas considerações, verifica-se que a peça publicitária do famoso banco espanhol evidencia em alguma medida o acerto de se colocar a dívida e sua relação com a vida no centro da reflexão. A propaganda da instituição financeira deixa ao fundo a bela canção – imortalizada na voz de Milton Nascimento -, Tudo o que você podia ser, do grande grupo das Minas Gerais, Clube da Esquina, com especial destaque para o trecho sem medo.
Há por aqui a pretensão de se construir uma relação entre vida, coragem e dívida, com elementos espetaculares que têm por objetivo ressaltar que a instituição bancária acredita e aposta na vida, isto é, na composição da expressão dívida, o banco olha para o elemento de-vida.
Importante considerar que a mensagem da música do Clube da Esquina pouco ou nada tem que ver com a pretensa coragem de “empreendedores” que em muitos casos se assemelham a jogadores de pôquer no capitalismo de cassino.
Em que pese a engenhosidade da ação de marketing, torna-se possível perceber que no pano de fundo se apresenta a já antiga relação da vida com a apropriação e, em especial, com o acúmulo de propriedade. Contudo, na atual fase do capitalismo financista da aposta, em última instância, o que verdadeiramente se acumula é a dívida.
Assim, parte da filosofia europeia já vem denunciando criticamente nossa forma de vida. Guy Debord afirma que na sociedade do espetáculo o que existe é uma não-vida.
Nas trilhas abertas por Stimilli, parece possível falar que na atual conjuntura a não-vida pode ser entendida como uma vida em débito, que o espetáculo total administra, em especial os desejos que tomam a forma dos interesses, a fim de garantir a ilusão antinatural criada pelo neoliberalismo de que não existe outro caminho ou alternativa, para lembrar da conhecida afirmação de Margareth Tatcher.
Logo, nas entrelinhas do anúncio publicitário da forma empresa que melhor representa o sistema do capital (banco), encontra-se o velho e empoeirado mantra da dívida de-vida, o que nos permite recolocar a questão: o que é a vida?
Além disso, caberia perguntar: teria a vida um único sentido? Antônio Abujamra por inúmeras vezes nos alertou: a vida não tem roteiro. Por aqui talvez esteja interessante pista para pensar a vida por outras perspectivas, fora da chave bancária do antinatural individualismo e do endividamento.
Por fim, Abujamra, em uma de suas declamações ao final do programa Provocações, citava o poema de Edson Marques que nos incita a mudar, então, mude, mas comece devagar, pois importa mudar o caminho para andar por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde passamos.
Imagem: Freepik / Foto criada por @creativeart
Comentários estão fechados.