Profanar Michael Young é como pisar na arca da aliança. Violar Adam Smith é como uma cruz em nome de ninguém. Como escapar da metáfora religiosa, não é mesmo?
É pentescostal, a linguagem do mérito, é uma fé que se contradiz enquanto seu significado faz parte do tempo, que é percepção idiossincrática.
Acho que estou sendo confuso, mas como Tom Zé, é para esclarecer. Claridade, sobre a sombra do mérito ignóbil.
Como esperar uma benção para si seria um egoísmo descomunal com o resto do mundo, o mérito torna-se a legalização da exculpante.
O mérito tem um efeito contagiante, pois serve de escudo e espada para aquele que não tem armadura, tampouco técnicas de batalha. O escudo bloqueia compunção expiatória do gozo de crescer não como ser, mas como significado. A espada justifica com sanha no peito daquele que questiona a legitimidade do mérito.
Mérito e culpa tem uma relação bem íntima, que talvez a narrativa liberal não nos permite perceber, mas o mais interessante é pensar que talvez o orgulho da sociedade capitalista em termos de construção de mundo, seja a vergonha do corpo por trás do valor.
O bom e velho neoliberal derrotista (mas com o sol no zênite) costuma predicar que o mérito se justifica nas oportunidades iguais. Diz ainda que no plano ideal da social democracia ninguém precisaria do comunismo (aqui é um complexo oppositorum, mais um conceito teológico sobre oposição entre bem e mal) e o comunista poderia retornar às trevas e viver do sabor da alma dos animais da floresta.
As oportunidades iguais, por sua vez, são, mesmo no plano das ideias, a oposição do mérito, a insustentável possibilidade do crescimento capital infinito, todos os amantes do mérito sabem disso, por isso mesmo se esforçam tanto – em seus métodos duvidosos de tecnocracia sobejante – para não serem engolidos pela derrota da antitese da igualdade. O mérito é uma escada. E como que é tudo que é paulatino, também é hierarquico e, como tudo que é hierárquico, existe o temor reverencial. Eis o mito da caverna liberal.
Mas o liberal derrotista grita que a igualdade é o ponto de partida, que o trabalho gera o crescimento sustentável da nação. Mas ao retornar a face para baixo ele diz que o mérito é ilimitado e lança perdigotos de emoção em seus subalternos.
Igualdade hierárquica. Justificada pela possibilidade além do horizonte. Não buscá-la é um pecado social, ser superior ao “irmão” é pecado divino. Materialismo espiritual.
O mérito se justifica no sofrimento. Assim como o ocidental escolheu um mártir para o representar no espírito, escolheu a agrura para representar sua substituição de sentido social.
De deus, o homem viu seu filho, que morreu sofrendo, que serviu de exemplo, mas o exemplo só fez-se significado na dor, no suor e sacrifício, os outros significados foram abandonados de forma acintosa, para poder justificar sua existência de ser segregado ao molde daquele que segrega.
Afinal, isso é hegueliano, é a inversão da realidade que a torna cada vez mais efetiva.
Se o trabalho o faz sofrer, mártir será, por conseguinte, na imagem do sofrimento de seu messias estará, nada de culpa restará por subir os degraus da meritocracia construindo um muro que impedirá a entrada dos infelizes dos degraus abaixo, que não devem ter sofrido o bastante, vide seu mérito.
Assim como o pedido de milagre egoísta, o mérito é o milagre do materialismo. Às vezes até se confundem.
Agora o que significa o ser? Significa nem Deus nem Homem, significa o que seu mérito significar, ele não paga mais seus pecados, paga sua moeda, que desde que haja suor, a expiação não virá. O humano não existe mais, o que existe é seu mérito, sobre a cabeça do menos provido de mérito, que também quer se livrar da posição abaixo dele, e assim consequentemente, a compaixão pode estar em outros lugares, mas não nos degraus. Ali a madeira é santa, o cimento é predestinado, quem ali pisa não peca, mas se justifica por isso.
Por isso Walter Benjamin é tão importante, pois ele afirma que esse modelo legalista, economicista, objetivista que dá origem ao mérito, ao valor do trabalho e a coisificação da pessoa não é uma forma de governo, ou tampouco um modo de vida, mas sim é uma religião, sem trégua e sem piedade, onde todo dia é dia santo, pois todo dia é dia de valor e de prostar-se ao valor, todo dia é dia de culpa seja pelo consumo seja pela falta, todo dia é dia de expiação no sofrimento do mérito.
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