Por Fernando Rodrigues de Almeida
Parece tão óbvio entendermos como parte natural de nós mesmos sermos pessoas. Mas natureza não é um conceito tão simples. Na verdade, natureza é essencialmente um conceito transcendental quando se trata de elementos que não estão lastreados pela ciência.
O grande problema é que, desde o advento do direito moderno a transcedentalidade vem sendo integralmente substituída pela abstração jurídica, que se torna mais real do que a própria vida, ainda que o direito seja mera hipótese argumentativa.
Veja-se que nos consideramos antes de tudo pelos nossos direitos, seja o que fazemos segundo nosso contrato de trabalho, seja nossa posição de contribuintes tributários, seja na mera lógica da propriedade. Não conseguimos pensar o que somos fora dessa lógica. Porém essa lógica é o inverso da realidade.
Mas, afinal, o que é o contrato? Essa garantia jurídica de nossos direitos? O que é o contrato senão a garantia da expressão jurídica da vontade a partir da negação da vontade?
Se somos livres quanto a nossa vontade, o contrato é justamente o oposto à vontade, pensemos juntos: um contrato, para o direito, tem como condição a vontade livre, e como conceito filosófico é a representação da liberdade, mas, na verdade o contrato é justamente a autorização livre de não ter uma vontade livre realizada. Se eu quero vender um carro por 10, por livre vontade, o comprador quer comprar com 1, por livre vontade. No fim das contas o contrato é vendido pelo ajuste, ou seja, é vendido por 5, valor este que não é nem a vontade do vendedor, nem do comprador. O contrato é a subserviência da liberdade.
A sociedade por sua vez implica essa subserviência ao ser livre da mesma forma, garantir a liberdade social é concordar em não ser livre em suas plenas vontades. Por um lado essa é a garantia para que vontades injustificáveis tirem a liberdade de terceiros e, de fato, não podemos admitir que uma liberdade absoluta coloque em risco uns contra os outros. Mas o problema não é esse, o problema é que, para nós, essa ilusão de liberdade se torna naturalmente o conceito de liberdade. Ou seja, o direito se utiliza da narrativa da liberdade para nossa subserviência.
Mais uma vez, não é um juízo de valor, se esse modelo é ruim ou bom, mas o fato de que certos conceitos, que expressam exatamente o oposto a eles mesmos facilmente são apreendidos por nós como parte da nossa existência.
Essa forma jurídica não faz parte de nós, ao contrário, é imposta a uma forma de vida, que existe graças a nossa forma de organização de poder. Mas a pergunta que fica é por que é tão simples apreendermos conceitos como parte da nossa vida a ponto de não conseguirmos visualizar uma realidade para além disso.
Pensemos na seguinte situação: Fulano é proprietário de um imóvel, enquanto Cicrano mora no imóvel em questão. Cicrano toma conta, administra, cuida, faz uso. Fulano é contratualmente proprietário. Quem tem mais poder sobre o imóvel? A resposta natural é Fulano. Mas por que? Pelo simples fato que a propriedade é um conceito, hipotético, inexistente no plano real, mas que tem força normativa, apenas isso e nada mais. O poder de fato é totalmente desnudado pela hipótese da norma. E enquanto eu falo isso, a você, leitor, já vem um desconforto, pois a necessidade de garantia do direito posto da propriedade é algo que não podemos ver se desfazer. Nos apegamos ao conceito jurídico de propriedade, uma forma virtual de realidade, como se esta fosse a verdade natural do nosso corpo.
Quando pensávamos em natureza, nos mais distantes tempos da humanidade, pensávamos em essência, Deus, faísca de vida, alma, etc. Hoje pensamos em Direito. Isso também não é incomodo de alguma forma?
Foto: Freepik
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