Por Fernando Rodrigues de Almeida
Há um texto de 1921, chamado “destino e caráter”, do filósofo alemão Walter Benjamin que nos faz provocações duras, e a partir dessas provocações é possível aqui apresentar um problema ainda mais duro: e se o direito penal tivesse mais ligação com misticismo do que com a Lei a qual se justifica a punição?
Benjamin nos apresenta a seguinte problemática: O destino e o caráter de um indivíduo, em geral, são vistos em uma relação causal, uma vez que o destino de alguém é consequência daquilo que suas ações são impulsionadas por sua disposição de caráter.
O caráter é um elemento que está no nosso vocabulário ativo diuturnamente. Isso porque a determinação do caráter de uma pessoa é uma justificativa importante para as ações dos outros que observamos dia após dia. Um “mau-caráter” é razão de sofrimento, frustração e incomodo para aquele que tem a infelicidade de encontra-lo. O caráter, como diriam alguns, “vem de berço”. Algo como um elemento natural a carne de um sujeito, um elemento quase etéreo que determina as ações passadas, presentes e futuras de cada indivíduo. Pelo menos é essa a impressão que temos, que aquele sujeito de caráter duvidoso é incorrigível. O problema, é apesar de tão facilmente atestado por nós, o caráter parece subjetivo demais, com riscos de julgamento excessivo e podendo sempre estar contaminado por uma visão unilateral. Por isso se pudéssemos torna-lo codificado, esmiuçar, prever, ler, catalogar o caráter de uma pessoa, em tese, poderíamos ter acesso ao seu destino.
Destino, por sua vez, é um conceito que carrega toda uma carga teológica, expiatória, apocalíptica, até mesmo escatológica. O destino comum, reservado às profecias, é o juízo final, que é inescapável. O destino é a condição mística do caráter.
Como ler os códigos do caráter a ponto de traduzir, para o bem das vítimas do mau-caráter, aquilo que está por vir, inevitavelmente, no destino, nas ações daquele que desmascaramos? Bem, isso, a grosso modo, se chama direito penal.
No direito penal a culpa é um conceito importantíssimo, é na culpa, que o juiz deve observar os códigos que revelam o que o autor do crime queria. É na culpa que o juiz deve definir qual o juízo de reprovação que o autor tinha para agir contra o direito. É pela culpa que o juiz definirá qual a intenção do autor ao cometer o crime. É na culpa que o juiz pode definir o caráter daquele violador da lei.
Talvez aqui já tenhamos um problema sério em uma pergunta simples. Como o juiz pode saber a intenção de alguém?
Até agora parecia apenas que o caráter era um elemento subjetivo, mas quando a lei trata sobre a definição de culpa, o que temos é um elemento de adivinhação estatuído, a incapacidade de ler a vontade e a intenção de alguém é tão drástica que ela só pode ser deduzidas a partir do próprio Eu em direção ao Outro. Como a lei exige a leitura das intenções. Ainda que sejam códigos e signos específicos, preestabelecidos que definam essas questões, esses elementos ainda assim serão essencialmente místicos.
Se pensarmos, com uma visão cética a respeito de um astrólogo que, ao ser consultado por um cliente, do signo de libra sobre seu namorado do signo de Escorpião, diz que esse relacionamento não daria certo, uma vez que os traços de personalidade do signo de Escorpião podem gerar uma competição entre o casal, isso pareceria, do ponto de vista objetivo, descabido, pois, como se justificaria a relação subjetiva por um predeterminação de personalidade lida a partir de códigos místicos? Mas não é isso que o direito penal faz? Leva em consideração elementos preestabelecidos, como antecedentes criminais – qual não necessariamente tem de ter a ver com a natureza do crime presente – ou elementos de comportamento que podem ser relevantes para decifrar a intenção do agente. Quais códigos são esses que determinam o caráter de alguém?
E não só isso, ao definir os elementos objetivos da condenação, cria-se um elemento legal e definitivos sobre o caráter do sujeito, o juiz aplica seu destino, pela forma numérica da pena e pela expiação milimétrica do tempo. Quando condenado, deixa de ser primário, e a partir dali, qualquer outra falta será lida a partir da definição anterior do caráter, ou seja, condenando-o a um destino.
Isso nos leva a uma afirmação importante de Walter Benjamin: “Por isso o homem moderno aceita a ideia de o caráter poder ser lido a partir dos traços físicos de uma pessoa, porque encontra de algum modo em si mesmo esse saber do caráter, enquanto a ideia análoga de ler o destino a partir das linhas da mão lhe parece inaceitável”.
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