Um alerta de Brecht: O analfabetismo e o antipolítico

Segundo Bertolt Brecht, o pior analfabeto é o político, e a coluna desta semana aborda o impacto dessa postura e da ascensão do antipolítico no Brasil.

  • Por Caio Henrique Lopes Ramiro

    Iniciamos este ano lembrando neste espaço das lições do prefeito Graciliano Ramos. Por ser ano eleitoral, parece interessante retomar outro alerta, agora do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Um dos pontos a se observar na eleição que se anuncia é uma mudança na esfera pública política, fundamentalmente, no que diz respeito à ação política dos cidadãos.

    Há pouco tempo havia um discurso de afastamento da política – o que se apresenta como projeto de neutralização do agir político —, tendo em vista que o espaço da política seria o lócus privilegiado da corrupção e o operar estratégico de seus atores.

    Nas últimas eleições municipais houve mesmo candidatos pelo país que obtiveram êxito nas campanhas eleitorais com a construção da imagem de um não político, ou seja, como um gestor vindo do “apolítico” mundo empresarial e que se apresenta como candidato antipolítico.

    No nosso tempo de agora, o gestor se metamorfoseou na sórdida figura do coach messiânico, o que ainda se pretende como antipolítico. É sobre esta figura e o que ela representa que pretendemos refletir a partir da poesia de Brecht.

    Bert Brecht em seu poema O analfabeto político nos ajuda a refletir sobre as questões expostas no parágrafo anterior. Escreve Brecht seu poema engajado: “O pior analfabeto/É o analfabeto político,/ ele não ouve, não fala,/nem participa dos acontecimentos políticos./Ele não sabe que o custo de vida,/o preço do feijão, do peixe, da farinha,/do aluguel, do sapato e do remédio/dependem das decisões políticas./O analfabeto político é tão burro que se orgulha/e estufa o peito dizendo/ que odeia a política./Não sabe o imbecil que,/da sua ignorância política/nasce a prostituta, o menor abandonado,/e o pior de todos os bandidos,/ que é o político vigarista,/pilantra, corrupto e o lacaio/das empresas nacionais e multinacionais”.

    Ora, da leitura do poema de Brecht pode-se argumentar no sentido de que a mudança de postura dos cidadãos brasileiros supramencionada seria algo benéfico, uma vez que nós teríamos saído da condição de analfabetismo político do sujeito inerte, indiferente e que não participa dos acontecimentos políticos.

    De fato, esse é um diagnóstico possível, contudo, cabe a questão: quais seriam as condições dessa participação? Aqueles que, há pouco tempo, estufavam o peito para dizer que odiavam a política, quais valores e inspiração/compreensão política orientam sua ação?

    Partindo de tais questionamentos, apresenta-se de maneira mais compreensível o cenário de enfrentamento político no Brasil. Não há um debate acerca de projetos para o país, mas, isto sim, um enfrentamento pautado em acusações e, de alguns setores e instituições, um fanatismo teológico que espera a vinda do Messias para redimir os pecados da política, mesmo que isso nos custe a liberdade.

    Um ponto fundamental a se observar talvez seja o de que o antipolítico agora participa, fala (especialmente em redes sociais), mas não ouve o Outro, não há nenhum respeito pela liberdade de manifestação da opinião, da diferença, muito menos interesse em escutar os argumentos apresentados pelo interlocutor que comparece no espaço público como antagonista e expõe um ponto de vista divergente.

    Neste sentido, a postura dialógica para a construção de acordos e de uma democracia deliberativa, nos moldes como pensou Habermas, fica totalmente inviabilizada. Dessa forma, parece não haver no Brasil contemporâneo possibilidade de construção da democracia pela via dos consensos normativos.

    Ainda, é preciso examinar dentro do discurso do antipolítico quais são seus reais interesses e seu ponto de partida para análise da conjuntura política brasileira. É possível notar uma reivindicação feita pelo antipolítico que objetiva seu reconhecimento como um liberal moralista, um combatente da corrupção. Contudo, há também nessa postura problemas de ordem teórica, haja vista a sofisticada definição que envolve o liberalismo. 

    Nota-se, invariavelmente, certa confusão acerca deste conceito, com uma nítida defesa de seu núcleo econômico, o que significa um achatamento estatal, com retirada de direitos – em especial sociais —, todavia, um grande distanciamento dos fundamentos morais e políticos do liberalismo clássico, o que implica total falta de respeito pelas liberdades públicas dos indivíduos, aos moldes do que defendiam Locke, Mill e John Rawls, por exemplo.

    Para pensar o Brasil, mostra-se interessante o debate sobre essas ideias liberais. Roberto Schwarz inicia seu texto As ideias fora do lugar, valendo-se dos dizeres de um panfleto liberal da época de Machado de Assis, em que se afirma que toda ciência tem princípios que organizam o seu sistema e que um dos princípios da economia política é o trabalho livre.

    Para Schwarz qualquer debate sério no Brasil deve levar em consideração um ponto de partida incontornável, qual seja: o de que “no Brasil domina o fato impolítico e abominável da escravidão”. Destaca Schwarz que a partir desses princípios “estávamos aquém da realidade a que esta se refere; éramos antes um fato moral, ‘impolítico e abominável’. Grande degradação, considerando-se que a ciência eram as Luzes, o Progresso, a Humanidade etc.”.

    Além disso, fazendo menção a uma crítica de Joaquim Nabuco ao teatro de Alencar, Schwarz destaca que o assunto escravidão era um tabu, pois ofendia o estrangeiro ilustrado, o que nos autoriza a pensar que “uma vez que não se referem à nossa realidade, ciência econômica e demais ideologias liberais é que são, elas sim, abomináveis, impolíticas e estrangeiras […]”. Ao acompanharmos a reflexão de Schwarz, coloca-se a questão da análise da conjuntura e da esfera púbica no Brasil a partir do ponto da escravidão. Há que se refletir a partir da “disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu”.

    No entender de Schwarz nosso processo de colonização, fundamentado no monopólio da terra, nos legou uma classificação tripartida da população, a saber: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”; entretanto, este último na verdade é dependente. Ora, essa dependência encontra suas bases no favor e o “agregado é a sua caricatura”.

    Essa figura se encontra presente na obra machadiana e, como prática social, verifica-se sobre toda tessitura social, “combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte, etc”.

    A partir destas coordenadas, parece melhorar nossa capacidade de compreensão do cenário contemporâneo da política brasileira, em especial, abrindo-se a possibilidade de questionamento a respeito dos fundamentos das inúmeras reformas propostas pelos antipolíticos.

    Não é de hoje que reformas que afetam a camada mais frágil da população são defendidas e propostas pelo antipolítico e sua maquiagem liberal. O curioso é que o ataque aos direitos sociais é feito sob a égide do combate aos privilégios, não obstante, caberia a pergunta: privilégios de quem? Uma boa pista para a resposta nos dá Maurício Tragtenberg, em entrevista concedida ao Jornal de Hoje, no ano de 1979.

    Quando questionado sobre a mudança política e a situação econômica do Brasil, afirma Tragtenberg que: “no caso brasileiro, o que caracteriza a mudança política é que o povo está sempre ausente. O povo é aquela camada que não participa dos privilégios do poder […]”. Aqui se apresenta algo de fundamental importância, direitos – especialmente os sociais como o trabalhista e o previdenciário -, não podem ser encarados como privilégios pela própria população, como querem fazer pensar os gestores e os antipolíticos.

    A respeito dessa pretensão de fazer crer que os direitos são privilégios, argumenta Tragtenberg: “isso aí sempre se dá nas costas do povo e ele no fim acaba pagando a conta do custo social de mudanças em que ele não é consultado, em que ele não participa, mas é manipulado. Ele ficou massa de manobra. Você pega o processo político brasileiro de 1930 pra cá e vê justamente isso”.

    Para Tragtenberg o que se convencionou chamar de revoluções brasileiras são acomodações entre a elite – basicamente de representações urbana/industrial e rural – e o poder, um acordo fechado entre “o setor industrial, bancário e agrícola e os grandes bancos internacionais”.

    Assim, todo discurso dos antipolíticos representa um projeto de ataque aos direitos sociais e, não obstante, acreditar que as reformas que vêm sendo propostas buscam acabar com privilégios não passa de uma ilusão. Conforme aponta Tragtenberg as reformas tendem a “garantir o que está aí. Só isso”.

    Por fim, nos alerta Brecht: “Não se dirá: Quando a nogueira balançou no vento/Mas sim: Quando o pintor de paredes esmagou os trabalhadores./Não se dirá: quando o menino fez deslizar a pedra lisa pela superfície da correnteza/Mas sim: Quando prepararam as grandes guerras./Não se dirá: quando a mulher foi para o quarto/Mas sim: quando os grandes poderes se uniram contra os trabalhadores./Mas não se dirá: Os tempos eram negros/E sim: Por que os seus poetas silenciaram?”.

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