Brasil: República em estado de exceção

Na coluna desta semana, entenda como a exceção se tornou a regra e o que isso significa para o futuro da democracia brasileira.

  • Por Caio Henrique Lopes Ramiro

    Inicialmente, convém uma nota preliminar de cunho metodológico, advertindo-se que não se tem nenhuma pretensão de esgotamento temático no que diz respeito ao desenvolvimento historiográfico brasileiro e do problema do estado de exceção. O ponto do qual partimos para uma reflexão sobre a atual conjuntura brasileira é o do intrigante argumento da crise que, ao contrário do que pensavam alguns, não foi dissipada pela mudança do chefe do Poder Executivo, nem poderia ser dado seu caráter estrutural e imanente ao sistema de produção do capital.

    Não obstante, no que diz respeito ao nosso cenário, do ponto de vista da teoria política é bastante comum pensarmos a ideia ou experiência republicana em conjunto com a democracia – a partir da aurora da modernidade -, o que retiraria de cena o governo dos homens (“Eu monarca”), que tinha por prática o reconhecimento de cidadania pela via de concessão de privilégios e, por conseguinte, a eclosão de uma proposta pautada no império do direito, oportunidade em que a cidadania é reconhecida pela Lei e não pelos governantes, cujo mote se concentra no argumento da igualdade – em sentido universal -, perante lei, o que acarreta a necessidade do reconhecimento e atribuição de direitos recíprocos entre os cidadãos, estes últimos vinculados à ideia das liberdades, responsabilidades, direitos humanos e justiça na distribuição da riqueza, ou seja, há uma igualdade de participação na esfera pública política e um necessário respeito à lei, pois todos são igualmente legisladores.

    Desse modo, uma análise desse ideário republicano associado à democracia se faz pela via da qualidade das instituições e da abertura no que diz respeito ao diálogo e deliberações públicas, portanto, dentro da perspectiva moderna de autolegislação enquanto liberdade moral e política (autonomia), o que se compreende como uma via secularizada do pensar político, significa dizer uma separação entre o teológico
    e o político.

    Desde algum tempo alguns pensadores políticos vêm se dedicando a refletir sobre o panorama político pela via da exceção. Tal abordagem pode se dar a partir de um pensar o conceito do político a partir do paradigma da exceção ou mesmo considerar essa última como elemento constitutivo da ação política e de estruturação do estado moderno. Do ponto de vista conceitual há um debate importante a respeito do estatuto teórico da exceção, contudo, em linhas gerais, essa categoria pode ser compreendida na chave da suspensão da normatividade
    e da situação de normalidade desejada pelo moderno estado de direito.

    Em um passado não muito distante a situação de exceção poderia ser simbolizada pela estética do estado autoritário ditatorial, o que significa a imagem orwelliana de uma bota pisando um rosto humano. De tal modo, uma das imagens da exceção é a ditadura. Quando se colocam estas imagens no passado não se quer dizer que isso não ocorre hodiernamente, no entanto, o estado de exceção segundo Giorgio Agamben assume uma forma espectral, o que dificulta sobremaneira a sua percepção.

    Logo, não se pode pretender compreender a exceção apenas pela via ditatorial, do estado de sítio e do estado de defesa, mas, isto sim, pensar que o descrédito na política com a consequente ausência do reconhecimento de sua dignidade – em termos arendtianos -, pavimenta um perigoso caminho pelo qual podem vir a transitar novamente os mitos teológicos salvacionistas que operam na excepcionalidade, fundamentalmente no que diz respeito à suspensão da legalidade positiva em nome de categorias jurídico-políticas de textura aberta como bem comum, guerra justa (inclusive contra a corrupção) e garantia da paz, o que se verifica como imaginário construído na tessitura social brasileira, quando da associação entre parcela do empresariado de linhagens escravistas e os militares, a fim de consumar o golpe de estado em 1964, o que fez eclodir um longo e sombrio inverno, com toda sorte de violências, tais como, perseguições, assassinatos, desaparecimentos, expurgos, estupros e, apesar de tudo, impunidade.

    Conforme mencionado linhas atrás, a associação feita entre república e democracia depende do reconhecimento da dignidade da política enquanto espaço público de ação/participação em liberdade, o que fortaleceria a ideia de cidadania. No entanto, percebe-se um eclipsamento desta perspectiva, com o retorno de argumento que pretende o decreto do fim do político e o aparecimento de atores e instituições que se arrogam uma perspectiva providencialista, de reserva de autoridade moral e de justiça. Ora, ao partirmos de um exame mais paciente e considerando uma abordagem a partir da promessa da modernidade e de seu incensado estado de direito, pode-se notar que os conceitos mobilizados como justificativa do estado de exceção têm uma natureza marcadamente teológica secularizada.

    O diagnóstico do descrédito no parlamento – e na representação daí advinda -, nas instituições políticas e nas leis, acarreta uma amnésia social dos valores democráticos que passam a ser substituídos pelo desejo pela vinda de um messias-julgador do fim dos tempos, um homem enviado pelo destino para banir o mal que se materializa na imagem da política, algo que não é nada novo no imaginário social brasileiro, remontando, no mínimo, ao ideário dos anos de 1930.

    O que não pode se perder de vista, conforme mencionamos no início, é que a origem do mal se encontra na palavra mágica crise. O fetichismo da economia e da razão instrumental utilitária (máxima felicidade individual) declararam a política como o inimigo (hostis), assim, o fim do político pode importar uma negação da força normativa da Constituição, bem como uma ação política que se faz por lobbies – com decisões sendo tomadas nas nebulosas antessalas kafkianas -, modificando o cenário político no que diz respeito ao espaço público da pluralidade e da participação, dessa forma, as decisões mais importantes do ponto de vista político são tomadas por indivíduos cuja legitimidade de seu poder é contestável e, além disso, passa o governo a ser exercido pela via de decretos (medidas provisórias, por exemplo), o que nos autoriza a pensar que, à sombra da expansão colonial do capitalismo, no Brasil foi decretado o fim da democracia e a crueza da exceção impacta a vida dos cidadãos, especialmente daqueles que, em nosso país, sempre estiverem fora de relação com a cidadania, pois já foram considerados bestializados e, posteriormente, talvez conseguiram, no máximo, alçar o degrau da subcidadania.

    Assim, para lembrar das palavras de Silvia Viana – em seu texto Acabou! -, o problema da barbárie não está ligado ao seu tratamento como normalidade, mas, isto sim, que seja o normal. Isto é, o problema é que a exceção se tornou a regra, portanto, há que se perceber na melancolia da falta de projeto e de discurso uma disposição para a vida, no sentido de se verificar a falência de certas instituições e conceitos e, doravante, pensar algo novo para reconhecer que a luta continua. Daí é preciso lembrar a violência que marcou os corpos, recuperar a
    memória das lutas dos oprimidos a fim de que se possa dizer: Nunca mais!

    Foto: Reprodução

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