(In)Disciplinas: O voto e a urna

O voto impresso no Brasil: retorno à transparência ou ressurgimento do cabresto? Descubra na coluna (In)Disciplinas desta semana!

  • Por Caio Henrique Lopes Ramiro

    Na primeira coluna do ano tratamos das lições do prefeito Graciliano Ramos para meditar acerca das eleições municipais que se avizinham. Parece interessante retomar este tema, a fim de refletir acerca de curioso argumento que se projetou no debate público brasileiro e, podemos dizer, com alguma certeza, vai regressar, discurso que defende a necessidade do retorno do voto impresso no Brasil, algo que se apresenta com o sentido de voto ou eleições auditáveis, ponto de vista que já tinha sido defendido nas eleições de 2018, contudo, naquele momento havia um interesse de vincular esta necessidade a fim de se evitar a fraude eleitoral, que seria por hipótese ocasionada pelas urnas eletrônicas.

    De saída é interessante notar que não foi comprovada fraude nas eleições que utilizaram as urnas eletrônicas. É de bom alvitre considerar que desde o início do emprego da mediação tecnológica no procedimento eleitoral – nas eleições municipais do ano de 1997 -, não houve anulação de pleitos eleitorais por fraude.

    Neste sentido, cabe perguntar: o que justifica esse argumento? Não obstante, talvez uma questão interessante seria a do valor do voto. Além disso, outra questão seria a de uma consciência da responsabilidade na escolha política, quando se pensa em um governo representativo e toda luta política travada pelo reconhecimento do direito ao voto e a livre escolha de representantes na democracia parlamentar, tendo em vista, por exemplo, o voto feminino ou o combate travado em períodos sombrios de ditadura militar.

    Contudo, ao lançarmos um olhar retrospectivo para a história política brasileira é possível verificar que o voto impresso é que pode ser posto em dúvida, como o foi, por exemplo, pelas lideranças que capitanearam o movimento que se convencionou chamar de revolução de 1930.

    Ora, essa cognominada “revolução” tinha por bandeira central a verdade eleitoral, ou seja, falava da necessidade de renovação dos costumes políticos, com o fim das eleições fraudulentas que marcavam a primeira república (1891-1930), processos eleitorais que, longe de contar com qualquer “maquinha de votar” – previsão que só aparece no Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076), em seu artigo 57 -, eram fortemente influenciadas pelos donos do poder locais e contavam com a participação geminada de alguns eleitores e, também, com o “cidadão espectral”, que participava das eleições do além túmulo.

    Oportuno mencionar que justamente nos anos de 1930, na primeira fase do governo Vargas, serão confeccionadas as primeiras legislações que tentam dar conta dos processos eleitorais, com o Código Eleitoral aparecendo em 1932 dispondo em seu artigo 5º a respeito das funções da Justiça Eleitoral e, em maio do mesmo ano, foi instalado o Tribunal Superior Eleitoral na capital da República, em clara tentativa de regulamentar às eleições, lembre-se, feitas até então por voto impresso.

    Considerando esse tema posto em debate, um bom ponto de apoio para uma reflexão honesta acerca da eleição e das formas de participação eleitoral no Brasil pode ser encontrado no livro de Victor Nunes Leal, a saber, Coronelismo, enxada e voto. Leal tem por objeto uma observação do município e do regime representativo no Brasil, recortando a figura do coronel como alvo mais específico de análise, o que permite uma abordagem dos pleitos municipais e o peso do coronelismo no resultado das eleições. Victor Nunes Leal destaca a figura proeminente do coronel no meio rural.

    O proprietário de terras tem um claro prestígio político na municipalidade, algo bastante presente no interior brasileiro, que vai da influência política, passando pela financeira – com as ligações que possui com os bancos – até chegar, para parafrasear Maria Sylvia de Melo Franco, no homem livre que aparece da ordem escravocrata, ou seja, o camponês empobrecido.

    Segundo o diagnóstico de Victor Nunes Leal, há uma massa humana que retira sua subsistência da terra que está forte e lamentavelmente empobrecida, vivendo em um estado latente de ignorância e abandono, que implica em uma ascendência do coronel-latifundiário, tendo em vista que é a este último que o camponês recorre em momentos de dificuldade.

    A partir de tais coordenadas, Leal caracteriza o trabalhador rural como alguém em dificuldades materiais, agravadas pela condição do analfabetismo, ausência de assistência médica, ou seja, sem acesso à informação e direitos fundamentais, o que o leva a acreditar que o senhor de terras é um benfeitor, pois é “dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece”. Ora, dirá Victor Nunes Leal que por consequência verificaremos no plano político o aparecimento do voto de cabresto, pois o trabalhador rural empobrecido irá lutar com e pelo coronel, inclusive, observará a sua direção política. De tal modo, os coronéis controlavam o resultado das eleições, que tinham como procedimento o voto impresso depositado em urnas, que poderiam ser auditáveis, contudo, não o eram devido a ascendência política do coronelismo.

    Assim, ao considerarmos esses pontos da história política brasileira em conjunto com um cenário complexo e sombrio em que o coronel não desaparece, todavia, divide o protagonismo político com outros atores sociais do meio urbano, alguns não menos sombrios personagens de uma institucionalidade corrompida que talvez possa ter suas raízes vinculadas à capitania do mato, ou seja, aos agentes do aparato de violência do coronelismo, caberia perguntar: a quem serve o retorno do voto impresso no Brasil? Estaríamos interessados em voltar ao cabresto?

    Foto: José Cruz/Agência Brasil

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