Por Caio Henrique Lopes Ramiro
Para iniciar, após os festejos de carnaval, parece interessante lembrar que estamos em ano de eleições municipais. O tema é não só oportuno, mas, também, bastante interessante, pois como dizia André Franco Montoro “ninguém vive na União ou no Estado. As pessoas vivem no município”.
A partir desta ponderação do professor de teoria do direito da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo e respeitável político de expressão nacional, verifica-se a atenção que deve ser dada ao pleito municipal. Por aqui, é afirmar o óbvio – e para falar com Bertolt Brecht, tristes são os tempos em que temos de afirmar o óbvio -, ou seja, reafirma-se a importância do voto. Nosso ponto seria examinar o outrora tão festejado voto consciente. Caberia a pergunta: consciência de que?
A partir de tal questão, por muito tempo se afirmou em segmentos da opinião pública e da que se publica algo como uma falta na tessitura social brasileira, sendo esta última uma ausência de consciência e interesse político. O ponto talvez fosse de observar que no fundo se construiu um cenário político em que se excluiu o povo ou, ainda, representava-se este último a partir de um jogo de espelhos da classe dominante brasileira.
Não obstante, nos últimos tempos houve algo como um espanto com a entrada em cena de forças pregando abertamente a luta política, todavia, trata-se de atores que em muitos casos vêm do segmento médio da sociedade e reativam leitmotiv do fascismo brasileiro, com uma pauta de afirmação de pretensos valores que remontam ao início do século XX, como, por exemplo, família, religião e propriedade.
Além disso, um ponto desta pauta também está ligado ao combate à corrupção, algo que nem de longe é novo no Brasil. É sobre este ponto que pretendemos nos debruçar nas linhas que seguem.
O personagem de nossa coluna é famoso literato brasileiro, a saber: Graciliano Ramos, autor, dentre outros clássicos, de São Bernardo e Vidas Secas. O que talvez não seja muito conhecido do público é a sua experiência como prefeito da pequena cidade de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, tendo sido eleito para o cargo no dia 7 de outubro de 1927, permanecendo até o dia 10 de abril de 1930.
O prefeito de Palmeira dos Índios é em alguma medida conhecido por sua militância à esquerda, portanto, o pequeno município alagoano elegeu como chefe do poder executivo alguém que entre os anos 1920-1930 era caracterizado pela maquinaria teológico-política da época como o inimigo comunista, o que talvez indique alguma semelhança com o nosso tempo.
Todavia, em um primeiro momento, o que chamou a atenção naquela quadra da história não foi a opção ideológica do prefeito, mas, isto sim, sua atuação, em especial pelos relatórios da administração enviados ao governo do Estado. Os documentos emitidos pelo prefeito Graciliano eram notáveis não só por sua qualidade estética, no que tange à beleza literária dos textos, mas, também, pela excelência no que diz respeito à probidade na condução dos rumos da cidade.
Em idos de 1928, o jovem prefeito se encontrava bastante insatisfeito com a ausência de lei que regulamentasse a vida social, em especial um código de normas com disposições a respeito dos usos dos espaços comuns da municipalidade. Por aqui, Sua Excelência apresentou projeto aos conselheiros municipais (vereadores) que resultou em um Código Municipal, com 82 artigos.
Conta-se que uma das questões que afligiam o chefe do poder executivo dizia respeito à conduta de deixar animais soltos na área urbana. Certa feita, um fiscal municipal topou no meio da rua com porcos de propriedade de Sebastião Ramos, conhecido produtor rural e comerciante de Palmeira dos Índios. Por autorização legal o fiscal teria de aplicar uma multa ao munícipe, podendo, inclusive, ter atirado nos animais. Todavia, não fez nenhuma coisa, nem outra, sob a alegação de constrangimento. O prefeito protestou e mandou lavrar a multa, feito o pagamento, fez a entrega do recibo em mãos de seu Sebastião, como Sua Excelência chamava seu pai, que obviamente não recebeu a sanção com alegria.
Por fim, houve reincidência. Neste momento o comerciante teria uma nobre lição por incentivar o filho a concorrer ao cargo de prefeito, pois, certo dia entra na prefeitura um cidadão a denunciar abusos. O caso envolvia invasão de propriedade, haja vista que o gado do vizinho ingressou em sua roça de mandioca, causando prejuízos. Contudo, ao invés de indenização, o matuto recebeu nova visita do gado do produtor rural. O prefeito, então, questiona o porquê do atraso do cidadão para a reclamação, quando, então, é surpreendido com a notícia de que os animais são de propriedade de seu pai.
Em resposta, diz Sua Excelência que “fique o senhor sabendo que prefeito não tem pai nem mãe”. Como medida de resolução da situação, proferiu ordem para apreender o gado e chamar o proprietário. Quando da audiência, afirmou o prefeito que não tinha pedido para ocupar o cargo e, diante dos danos e da injustiça cometida pelo conhecido proprietário rural, afirmou que ele era o responsável pelos danos causados ao comum cidadão e que deveria suportar uma multa pelos estragos.
Assim, nota-se que a luta contra a corrupção não é algo novo no Brasil e, além disso, há exemplos de respeito a moralidade administrativa no exercício das funções públicas. Logo, observar as lições do prefeito de Palmeira dos Índios nos ajuda a melhor angular nossa crítica, a fim de recuperar a dignidade da política no sentido de compreender que esta pode ser entendida como o mundo em que exercitamos nossas liberdades e diferenças, o que talvez nos auxilie a nos livrarmos do espírito coronelista e familiar e, ainda, de mitos salvacionistas.
Foto: Reprodução Globo News
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