(In)Disciplinas: Em defesa do sono

Em um mundo que idolatra o trabalho sem fim e a produtividade constante, entenda como o descanso se torna uma forma de revolução.

  • Por Caio Henrique Lopes Ramiro

    Neste espaço já nos interrogamos e apresentamos respostas acerca de formas de vida, algo como formas de estar no mundo. Há uma potente ideologia econômica que pretende a afirmação de maneira unidimensional da existência e que coloca como horizonte a acumulação de capital para apropriação do mundo.

    Neste sentido, o sistema de ideias do empreendedorismo se disseminou e levou os indivíduos a acreditarem que são empresários de si mesmos e, a partir disso, devem olhar para o mundo como um campo de batalha em que imperam a concorrência, a ganância e a produtividade. De tal modo, nota-se algo como a destruição da possibilidade de laços de solidariedade e de reconhecimento por esta matriz de (auto)exploração totalizante.

    Há um interessante diagnóstico acerca desta forma de vida e seu modelo baseado na concorrência. É preciso meditar um pouco acerca de clichês como “trabalhe enquanto eles dormem”, pois este tipo de afirmação atinge em cheio e desvaloriza algo como o sono, ou seja, a ideia de descanso.

    O sociólogo italiano Domenico de Masi já de algum tempo se debruçou sobre a questão, fundamentalmente por sua inquietação quanto ao padrão de sociabilidade em que surge uma idolatria pelo trabalho. Desse modo, a fim de repensar esta perspectiva, elabora uma proposta em que se destacam simultaneamente trabalho, estudo e lazer, no qual aponta uma educação para a valorização da convivência, de atividades lúdicas, da amizade e do amor.

    Ainda, é possível lembrar do filósofo coreano Byung-Chul Han e sua hipótese de que vivemos numa forma de organização social em que as pessoas se cobram cada vez mais por resultados, tornando-se elas mesmas os vigilantes e feitores de seu desempenho e, por conseguinte, o que surge em substituição a sociedade disciplinar do século XX é uma sociedade do cansaço, que tem como marca a violência neuronal.

    Neste horizonte de perspectiva, outro interessante diagnóstico do modelo de sociabilidade do capitalismo contemporâneo é apresentado por Jonathan Crary, no seu instigante 24/7-Capitalismo tardio e os fins do sono, livro em que Crary argumenta que a disponibilidade para trabalhar, consumir e responder 24 horas por dia, sete dias por semana, apresenta-se como a tônica social.

    Dessa maneira, a lógica atual do capitalismo não se submete mais a dinâmicas de limitação espaço-temporais, o que implica em colocar a prova a necessidade de repouso dos seres humanos, atingindo, assim, o sono, o que deve ser compreendido como a última fronteira ainda não ultrapassada pela sociedade de mercado.

    Por esta via se apresenta interessante a proposta da teóloga Tricia Hersey. Em linhas gerais, Hersey afirma que na atual conjuntura de nossa organização social, isto é, nos tempos em que o capitalismo se tornou uma religião implacável, o descanso se apresenta como uma verdadeira forma de resistência, um verdadeiro ato revolucionário. A hipótese de Hersey é a de que “a exaustão não vai nos salvar”, logo, a partir de sua própria experiência de vida, pôde notar que o descanso é parte fundamental de nossa existência.

    Portanto, trata-se de superar a leitura do descanso como um privilégio, isto é, impõe-se o reconhecimento do sono e do repouso como uma atitude de resistência à idolatria do trabalho desenfreado, o que, em última análise, tem prejudicado a saúde física e mental das pessoas. Desse modo, a ideia é reconhecer que ser um workaholic não é e nem pode ser uma virtude, pois, ser viciado em trabalho é ter um vício.

    Assim, defender o sono se coloca nas trilhas da desobediência, logo, não se trata de dormir para produzir mais, mas, isto sim, descansar e desacelerar como prática de libertação.

    Foto: www.gpb.org/

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