Por Caio Henrique Lopes Ramiro
Thomaz Miguel Pressburger, nasceu no ano de 1934 em Budapeste, na Hungria. Naturalizando-se brasileiro, deu grande contribuição para a construção da assessoria jurídica popular nacional. Faleceu em 13 de julho de 2008. O presente texto pretende recuperar um pouco do olhar crítico deste advogado popular – fundador e coordenador do Instituto Jurídico de Apoio Popular -, em especial sua abordagem referente a natureza do direito do trabalho.
De início é preciso reaver algumas ideias e, em especial, uma questão colocada por Miguel Pressburger, em texto publicado na Revista de Direito Alternativo, nº 2, no ano de 1993. Pergunta Pressburger: o Direito do Trabalho, é um direito tutelar? Tal problematização se apresenta totalmente atual e interessante para uma tentativa de compreensão preliminar de alguns assuntos que envolvem o direito do trabalho no Brasil contemporâneo. A inspiração teórica que se coloca no horizonte de análise de Miguel Pressburger é o pensamento de Karl Marx e a reflexão jurídica marxista representada por Pachukanis, o que permite um exame crítico da função da forma jurídica dentro da dinâmica da sociedade burguesa e capitalista.
O primeiro ponto de observação é o do caráter mediador da forma-Direito. Esta última se apresenta como o duplo das relações sociais que se estabelecem por trocas mercantis, o que permite a Pressburger o correto diagnóstico de que as relações capitalistas são medidas pelas mercadorias, portanto, “as pessoas não são mais capazes de se pensar e de pensar os outros, a não ser pelo ter” (1993, p. 182). Ora, a partir desse critério de medida, isto é, o da relação fetichista das mercadorias, identifica-se como pressuposto uma categoria jurídica, a saber: a propriedade privada, que segundo Pressburger só pode ser definida juridicamente pela forma do contrato.
Neste sentido, as relações sociais serão pensadas por meio de categorias universais que possam garantir o acesso das mercadorias ao mercado. O Direito garante a esfera da circulação mercantil a partir de categorias abstratas como a do sujeito de direitos, que no fundo são os corpos dos valores de troca, “isto é, equivalentes vivos de valores iguais” (1993, p. 183). Portanto, Pressburger afirma que é na circulação mercantil que se articula a igualdade formal, na exata medida em que nos mercados os sujeitos de direito se relacionam com base em sua pretensa vontade livre e sem diferenças, não havendo melhor figura para representar essa relação do que a imagem contratual, haja vista que “a causa última do contrato é a própria vontade de contratar” (1993, p. 183).
A partir destas coordenadas, Pressburger – em diálogo com Antoine Jeammaud -, interroga: o Direito do Trabalho participa na tutela da classe operária? No entender de Pressburger uma visão reducionista do direito laboral responderia afirmativamente que sim, pois este ramo da dogmática jurídica estaria a legalizar a exploração capitalista, bem como colocaria fim a luta de classes por meio de normas tutelares. Ele sublinha que há necessidade de recusa de leituras reducionistas e, além disso, que não podemos desprezar qualquer tipo de conquista legislativa que venha a se materializar como direitos fundamentais, em especial a imagem social destes últimos.
No entanto, não podemos perder de vista a forma (bio)política do capitalismo contemporâneo, o que nos permite compreender as investidas contra direitos fundamentais e o desmonte dos assim chamados estados de bem-estar social em várias partes do mundo. Em nosso contexto não é muito diferente. Houve e ainda há uma investida contra direitos fundamentais, em especial a legislação trabalhista, que foi profundamente alterada com a edição da Lei nº 13.417/2017 (reforma trabalhista), sob pretexto esdruxulo de que a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) era uma barreira legal ao investimento e desenvolvimento econômicos. Contudo, não foi só o legislador a atacar a CLT, também o Supremo Tribunal Federal colaborou com a violação do princípio de proibição de retrocesso dos direitos fundamentais quando autorizou por decisão judicial a terceirização irrestrita na esfera de produção nacional.
A terceirização, do ponto de vista das organizações da classe trabalhadora, é paradigmática da precarização das condições de trabalho. Um exemplo modelar poderia ser retirado da tão mencionada esfera educacional brasileira. É possível pensar que uma escola particular – que no fundo é uma empresa -, agora pode ter o corpo docente não mais vinculado a sua esfera de responsabilidade no que diz respeito às obrigações trabalhistas, sendo os professores vinculados a outra empresa que presta serviços à primeira.
Ainda no caso específico do liberalismo conservador-autoritário ou neoliberalismo brasileiro, o argumento é de que os direitos trabalhistas são em realidade privilégios concedidos por um ranço corporativista de idos dos anos 1930, o que representa a necessidade de nova “modernização/atualização” da legislação e de acabar com o legado da era Vargas. Assim, os interesses de mercado decidem que não devem mais existir limites legais para o próprio mercado, com a consequente máxima exploração da vida dos cidadãos, isto é, uma espécie de totalitarismo neoliberal.
Lembrar de Miguel Pressburger coloca a possibilidade de compreender que os conflitos sociais não deixam de existir pelo simples fato de sua regulação jurídica, haja vista que do seu diagnóstico – apoiado em Marx e Pachukanis -, podemos vislumbrar que a tutela dos direitos não está ao lado da força de trabalho, mas, isto sim, com os interesses econômicos. A forma-direito é um dos dispositivos privilegiados de captura e controle das táticas de luta populares.
Diante de tal conjuntura é preciso rememorar com Pressburger que precisamos de novas posturas políticas a explorar as contradições do Estado e de seu discurso de direitos, a começar por refletir criticamente a respeito da localização dos privilégios. De algum tempo os trabalhadores e trabalhadoras empobrecidos vêm suportando toda a carga de uma crise sem fim do capital, como, por exemplo, as várias concessões feitas ao mercado no que diz respeito a isenções fiscais de empresas. Além disso, deve-se pensar seriamente a respeito da tributação de grandes fortunas.
Vale citar as palavras de Pressburger quando diz “o Direito que nos cerca ainda é o Direito do Capital”. Cabe lembrar outro tema caro a Miguel Pressburger e que diz respeito à constituição de um Direito Insurgente. O chamado do jurista caminha no sentido da construção de uma práxis voltada ao reconhecimento de um direito construído na luta dos povos, que em nosso contexto é marcada pela escravidão, pela rapinagem de seus produtos, de sua força de trabalho e profundas diferenças no que tange a concentração de riquezas. Desse modo, o direito insurgente de Pressburger é perspectivista, na medida em que se constrói a partir dos olhares e das trocas de experiências dos oprimidos.
Portanto, para a constituição radical deste Direito será necessário recuperar a memória das lutas daqueles que vieram antes de nós, a fim de que possamos melhorar nossa posição no que diz respeito à tomada de consciência para o enfrentamento do estado de exceção econômico permanente e sua maquinaria sacrificial, cujo modo de funcionamento se apresenta na dialética perversa de um ciclo mítico-sangrento da violência.
Neste horizonte de perspectiva, o primeiro ponto a se reconhecer é o de que a exceção é a regra e, dessa maneira, precisamos ativar uma memória em chave da tradição dos oprimidos para pensarmos novas formas de ação política e, conjuntamente, ressignificar categorias político-jurídicas em uma perspectiva plural, horizontal e, por isso, radicalmente democrática, a fim de que não entreguemos totalmente nossas vidas e esperanças às imagens institucionais dos poderes constituídos, logo, mostra-se necessário insurgir-se contra o estado de bem-estar empresarial.
Foto: Assessoria Jurídica / Popular Blogspot
Comentários estão fechados.