O esotérico na era da reprodução técnica (ou observando Juliette, Neymar e Luisa Sonza)

Na coluna desta semana, entenda como artistas contemporâneos se tornaram ídolos de uma adoração seletiva, e como a arte se tornou secundária.

  • Por Fernando Rodrigues de Almeida

    ἐσωτερικός – que talvez eu possa transliterar para esôterikós – é um termo grego que conceitua algo que pertence a um pequeno grupo. Chamamos estes de esotéricos, quem desde o século II apresenta-se com o objetivo de grupos iniciáticos de disseminar um corpus de conhecimento a respeito de tópicos específicos relacionados a aspectos da existência que são subrepticiamente velados.

    Esses conceitos, por seu trato interno e distribuição circular tem, por si, um viés de aprovação muito pequeno, que faz com que esses conceitos, por muitas vezes, sejam caracterizados por conspiratórios. O que não é uma regra, afinal, de diversos grupos esotéricos retiramos importantes filosofias a serem estudadas. De qualquer forma, como conceito padrão, temos um organismo fechado em termos cognitivos.

    Por outro lado, o εξωτερική – que talvez eu possa transliterar como éksôtérikí – é um termo grego que conceitua algo que está disponível universalmente, ao público. Chamamos estes de exotéricos, geralmente atribuído a certos agrupamentos de conhecimento que tem sua face aberta ao mundo.

    Desde o século XX, o conceito do esoterismo pode ter transcendido as sociedades filosóficas e migrado para uma variante cultural, que é o consumo daquilo que a arte chamou de pop. O século XX é a verdadeira era da reprodutividade técnica, lembrada por Walter Benjamin, que retirou o Aqui e Agora da arte, gerando grandes conceitos de contemplação universal, talvez isso o estopim do exoterismo pop, afinal, personalidades passaram a ser, fora da sua estrutura de artistas, totens de apreciação, ídolos – conceito fundamentalmente teológico. Isso se tornou um fenômeno comum.

    Entretanto, o pop, justamente por seu elemento reprodutor da técnica tinha um lugar muito próprio no imaginário social, quais sejam, os grandes meios de comunicação. Música, dramaturgia, artes gráficas, atingiam sua universalidade na figura do artista a partir da inserção pela grande mídia, por meio da TV, radio e publicidade. Isso tornava os sujeitos por trás da arte ídolos de adoração exotérica a partir daquilo que faziam. Isso deu origem aquilo que tantos chamaram de pós-modernidade em que o desencanto com a vida gerava o consumo do entretenimento como uma religião de massa e escolha enviesada pelo produto criado.

    Mas chegamos no agora, e o termo pós-modernidade parece que não faz mais sentido, afinal há algo novo, e como ser pós algo superado? Os meios de informação digitais trouxeram a falência, ou ao menos a perda de poder, dos grandes distribuidores e reprodutores técnicos da arte. O consumo passou a ser segmentado, fracionado, mas com uma força narrativa e, principalmente, de idolatria ainda mais forte.

    Pense só, se há 30 anos, um cantor estava no topo das paradas, com sua musica tocando na novela das 21h da rede globo, do adolescente nas escolas até o padeiro que acorda às 3h da manhã para o trabalho sabia não somente da existência do artista, mas muito provavelmente de sua música de sucesso. Hoje, o artista que está nos charts, está em qual topo? O artista com milhões de seguidores no instagram é conhecido pelo padeiro que acorda às 3h da manhã para o trabalho e pelo adolescente ao mesmo tempo? Não, mas a idolatria permanece. Porém agora o movimento é esotérico, o que torna o saber ainda mais teológico.

    Um dos movimentos mais interessantes desse esoterismo pop é o que a técnica foi superada pela reprodutividade interna, o círculo é obcecado pelo conhecimento interno e não pela sua finalidade. Não importa a arte, importa o ídolo, importa de tal forma a polarizar sua atenção sobre o fato.

    Se Neymar nada joga de seu esporte, se machuca e ficará os próximos meses apenas produzindo conteúdo para internet, nada afeta o esoterismo de seus fieis, pois seu objeto, que seja o futebol, é apenas secundário perante sua imagem esotérica, interna do círculo dos iniciados.

    Se Juliette é acusada de plágio, se sua música tem ou não referencias que retiram de sua essência qualquer personalidade, nada afeta o esoterismo de seus fieis, pois seu objeto, que seja a musica, é apenas secundário perante sua imagem esotérica, interna do círculo dos iniciados.

    Se Luisa Sonza né acusada de racismo, e seu término com Chico Moedas em rede nacional é mais conhecida do que qualquer musica sua, nada afeta o esoterismo de seus fieis, pois seu objeto, que seja a musica, é apenas secundário perante sua imagem esotérica, interna do círculo dos iniciados.

    Esses polos exotéricos gritam nas redes sociais em assuntos que não são nada universais, em que os não iniciados nada entendem, procuram brigas sozinhos, e defendem seu culto reprodutor de uma ameaça que não existe, pois ninguém, além deles, se importa.

    O porém é que, sob o aspecto de percepção o mundo esotérico dos iniciados é enorme e alimenta, ainda mais a reprodução técnica, e de forma ainda mais categórica, pois se faz em uma oração fechada e uma fé ilustrada.

    Se a preocupação de Walter Benjamin naquele texto era o Aqui e Agora da arte, imagina ter que reescrever quando a arte em si é secundária sobre a idolatria.

    Foto: João Cotta – Globo / Instagram

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