Por Fernando Rodrigues de Almeida
Semana passada entrei em um terreno espinhoso ao falar de aborto – o que não faz ser menos importante falar sobre – mas, como sempre, gosto de prestar atenção em detalhes menos visíveis do discurso. Dos feedbacks que recebi, obviamente de toda a natureza, me chamou atenção o fato de como usar, naquele texto, o conceito de propriedade privada, é o que chamou a atenção e desenvolveu tensão em alguns dos meus interlocutores.
Primeiramente me chamou atenção que, pontualmente, alguns interlocutores extraíram que o texto equiparava o corpo, ou a mulher enquanto gestante a propriedade privada.
Obviamente se houve margem para essa interpretação a culpa não é do leitor e sim da minha própria linguagem, mas reconsidero no seguinte resumo: Aqueles que acompanham esta coluna já devem ter percebido que, ainda que em toda a confusão que eu possa passar, fica claro que não sou um liberal e justamente por isso que o texto da semana passada buscava desvelar o discurso moral que mascarava o debate e focar na ideia tradicionalmente liberal que é a propriedade privada.
Todavia, ainda que esse seja o escopo e minha deficiência em perceber que isso poderia ser interpretado dessa forma por alguns generosos leitores que entraram em contato comigo, ainda assim esse fato me chama atenção: é mais fácil extrair a propriedade privada como uma regra lógica do texto do que pensar que há uma afirmação contra esse conceito.
O liberalismo é uma condição fascinante para quem gosta de pensar racionalidade, justamente porque, de fato, é quase impensável, no inconsciente coletivo, considerar algo que não seja fora de seus conceitos pilares. Os marxistas mais tradicionais costumam chamar isso de Realismo Capitalista, ou seja, a impossibilidade de sequer imaginar um mundo para além da forma capitalista.
Aqui, como eu tenho a ideia que a forma política do liberalismo é mais poderosa até que a forma do capital, extraio essa ideia na forma política: é mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim da propriedade privada.
Gosto de pensar que esse conceito de propriedade é o elemento central da sociedade moderna, como uma forma, e o conteúdo atribuído a essa forma funciona como um aparato racional de mudança de forma, para esconder justamente a sua condição nada humana.
No texto anterior, que comento acima, por exemplo, ainda que o conteúdo seja a moral, observamos que a linha de força ainda era o interesse centralizado na propriedade. De fato: moral; bem-estar; sucesso; meritocracia; trabalho. Todas estas são elementos conteudistas da mesma forma, qual seja a propriedade.
A propriedade é uma forma curiosa, o liberalismo nos entrega como uma realidade, mas ao analisa-la de perto vemos que é mera ficção. Veja-se, em exemplo clássico, se alguém detém poder sobre um imóvel e deste usa, cuida, frui, dá finalidade, mas a este falta um elemento ficcional de título jurídico, chamado de propriedade, a este nada resta senão a mera posse.
Do contrário, o verdadeiro proprietário desse imóvel ali descrito, que não mora ali, não faz uso, nada extrai, não tem zelo, não tem interesse em sua finalidade, talvez apenas no valor do aluguel, mas, imediatamente, tem o título jurídico que dá a este o status de proprietário, no imaginário coletivo tem muito mais direitos sobre o imóvel que o possuidor. Você aí, agora mesmo, está pensando nisso: se o cara é dono ele tem direito.
O problema é que, materialmente, pense você, na realidade, sem elementos racionalistas, o poder se concentra no possuidor, o proprietário tem mera ficção, mas a realidade pouco importa quando no nosso imaginário não há realidade na realidade. Isso é o que o imaginário liberal nos causa. A inversão da realidade.
E me parece claro que um conceito tão precário quanto a propriedade precisa de muitos elementos para se sustentar. Creio, que conforme disse no texto passado, entendo que o maior e mais poderoso deles é a moral, mas minha eterna pergunta é o porquê que aderimos a isso?
Mais uma vez referenciando ao texto da semana passada, se a propriedade não fosse o elemento central do problema, mas sim uma moral pura e racional, sobre a existência ou não de vida no feto, o debate seria mais real, talvez impossível de deduzir, mas mais real, a partir do fato que a propriedade existe, não há que se discutir. Ou seja, as vezes o liberalismo passa por isso, torna-se uma contradição em termos.
Um dos meus pensamentos em relação a nossa relação com a propriedade privada é nossa importação cultural de um território nem tanto cultural, qual seja, o modelo norte-americano de vida. Um ápice do liberalismo, que galga sua cultura justamente na moralidade da propriedade privada. Consumimos muitos essa cultura, e podemos observar que o imaginário estadunidense tem muitas construções interessantes sobre o pavor da perda da propriedade como conceito moral. Pense nas bruxas de Salem por exemplo, um clássico do horror da história do puritanismo dos EUA, que breve e superficialmente, posso contar.
Salém, situada na desembocadura do rio Naumkeag, no Condado de Essex, hoje estado de Massachusetts, localizada na região de North Shore, nos EUA, tem suas raízes fincadas no solo de uma antiga aldeia indígena. A cronologia nos leva ao ano de 1626, quando colonos europeus decidiram estabelecer-se aqui, no rastro de uma empresa de pescadores que desembarcou de Cape Ann, sob o comando de Roger Conant.
A liderança firme de Conant foi uma bússola essencial nos primeiros dois anos de estadia, mas a intervenção da Massachusetts Bay Company trouxe mudanças. Por ordem da empresa, John Endecott assumiu o posto de Conant. Este último, em um gesto notável, recuou graciosamente e, como compensação, recebeu uma extensão de terra considerável, abrangendo 200 acres, o equivalente a cerca de 0,81 km².
Esse ato de desapego não só estabeleceu uma base sólida para a cooperação entre os “novos plantadores” e os “plantadores antigos”, mas também foi uma prova da sagacidade diplomática de Conant e da capacidade de Endecott em manter a harmonia entre as partes interessadas.
Entre fevereiro de 1693 e maio de 1694, ocorreu um período sombrio em que mais de duzentas pessoas foram acusadas de bruxaria. Destas, trinta foram declaradas culpadas, com vinte delas enfrentando a pena de morte. Das vinte execuções, dezenove ocorreram por enforcamento, envolvendo catorze mulheres e cinco homens, enquanto uma mulher idosa foi condenada ao esmagamento por pedras.
Essa ocorrência é considerada um dos casos mais notórios de histeria em massa na história da América Colonial. Ela tem sido utilizada tanto na retórica política quanto na literatura popular como um marcante alerta sobre os perigos do isolacionismo, extremismo religioso, falsas acusações e falhas no devido processo.
Veja que interessante: território indígena, mulheres praticando bruxaria em um território comercial, o que esses elementos tem em comum: o medo. Mas medo de que? O indígena, sob sua cultura desconhecida era o possuidor original da terra, e este mesmo não tem crença – exatamente elemento teológico da fé – na propriedade e pode vir a toma-la, de outro lado, mulheres solteiras ou viúvas, que podem vir a se enlacear com outras famílias mais poderosas que pelo poder da aristocracia ou da violência tomarão de assalto esse título ficto da propriedade.
Tudo é propriedade. A história que importamos é propriedade. O espírito que assombra a casa amaldiçoada é o intruso na propriedade privada que não pode ser retirado pelo poder do direito. O zumbi no apocalipse deixa de considerar os elementos privados e vaga sem respeitar os limites privados.
O pesadelo do modelo liberal é a perda da propriedade. Com isso não sou eu que tenta equiparar propriedade com pessoas, ao contrário, meu problema é o oposto, mas o imaginário coletivo já considera, em si, a propriedade como parte da vida. Mas não passa de um mito de fundação. Nosso Romulo é a propriedade, amamentado pela loba da moral.
Foto: Divulgação
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