Por Caio Henrique Lopes Ramiro
Conforme mencionamos neste espaço no último ensaio, a proposta tem sido a de meditar acerca de sentidos de vida e reflexão que escapem a visão e experiência unidimensional da forma de vida útil, em especial em termos econômicos, ilusão construída pelo espetáculo neoliberal.
No último escrito, considerou-se a longa sombra de Hiroshima e algumas notas da potente reflexão de Günther Anders, fundamentalmente no que diz respeito a vida na era atômica, ou seja, a vida dos ainda não inexistentes. Portanto, há uma dimensão claramente apocalíptica no pensador alemão.
Não obstante, no final do ensaio – e ao longo dos textos que o antecederam -, sinalizamos que existem reflexões e vozes que não esperam o apocalipse, ou seja, o tempo do fim, pois a sua forma de vida já foi impactada pela violência colonial e imperial.
Ao menos desde 1492 a guerra europeia redesenhou as linhas fronteiriças do mundo, construiu o mito de unidade chamado Europa e avançou sobre povos e culturas compreendidas como bárbaras, selvagens e bestiais; tudo em nome da autoproclamada civilização.
Talvez tenha chegado o momento de um esforço para tirar do silenciamento e do ocultamento estas formas de vida, outros saberes que não se ligam a apropriação acumulativa e a utilidade.
Neste horizonte de perspectiva, ressalta-se a importância do pensamento de Ailton Krenak, que chama a atenção para uma crítica ao modo de estar na Terra. Para o filósofo indígena, chegamos até o ponto crítico do tempo do fim de Anders, tendo em vista a noção equivocada do absoluto de uma humanidade esclarecida que poderia iluminar e erradicar a selvageria do mundo.
Ora, nota-se que o diagnóstico acerta o coração do onipotência da razão eurocentrada, desde aquilo que se reivindica como antiguidade clássica do mundo europeu, pois tudo fora do eixo greco-romano era tido por bárbaro.
Assim, a forma de vida belicosa da apropriação se ergue a partir do critério da inimizade e da barbárie a ser extirpada, isto é, existiria “um jeito de estar aqui na Terra”, algo como uma verdadeira forma de vida a ser reproduzida.
Esta chave binária do conflito e da inimizade colocou em oposição a vida humana e a Terra, significa dizer, que se construiu uma noção algo discutível de humanidade e, em seu nome, projetou-se a pretensão de se assenhorar da natureza.
Ao que parece, chegamos ao limiar em que se encontram os pesadelos da razão esclarecida dos ainda não inexistentes. Contudo, para o pensador indígena, o sonho da razão eurocêntrica esclarecida produziu um tipo de humanidade zumbi que não tolera a liberdade e a vida, pois seu horizonte é a apropriação sem limites e, portanto, um grande intolerância quanto ao viver em comum, quanto ao prazer de estar vivo, “de dançar, de cantar”.
Desse modo, um primeiro ponto a ser observado é o de que alguns diagnósticos acerca do fim do mundo servem para alijar os sonhos. O mundo ameríndio anterior a colonização chegou ao fim, todavia, não a possibilidade de outras formas de vida, que buscam apoio em saberes ancestrais.
Logo, colocar-se contra esta posição que pretende rebaixar expectativas e fazer com que ocorra a desistência quanto aos sonhos, em troca de ilusões que só se prestam a projetar uma vida unidimensional é uma ideia para barrar o fim do mundo. Parece razoável ouvir a voz que afirma ser possível “poder contar uns com os outros” e não concorrer uns com os outros.
Assim, uma forma de vida que resiste no combate desde a invasão de 1500, projeta sua ancestralidade pela voz de um chamado que afirma que quando sentirmos “que o céu está ficando muito baixo, e só empurrá-lo e respirar”.
Por fim, esta fala dos confins ressalta que para cruzar o pesadelo é preciso recusar a ideia que a vida pode ser inscrita na chave da utilidade, dessa maneira, pode-se verificar uma existencialidade radical como “pessoas coletivas” e não como indivíduos; uma compreensão de que somos parte do todo e não seus senhores.
Foto: Freepik
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