Por Fernando Rodrigues de Almeida
Em um texto recente, nesta coluna, falei sobre a técnica, sobre a reprodutividade formal e a ideologia frígida e “neutra” do liberalismo no chamado “progressismo”. Mas não pude parar ali, então volto com o mesmo assunto, mas levando pra mais perspectivas.
Isso porque foi justamente essa neutralidade que me levou a pensar sobre mais um ponto importante na capilarização geral do liberalismo técnico da cultura como, provavelmente, a ideologia de mais sucesso na história da humanidade e isso se deve, aparentemente, a essa “neutralidade”, que por ser extremamente ideológica e se utilizar da forma vazia – tanto da lei, quanto do capital – para se estabelecer no subconsciente coletivo, acaba sendo um subterfugio na opinião pública para justificar elementos muito mais fortes dos quais as ideologias de poder precisam se remontar para sobreviver.
E é isso mesmo, vamos tirar o elefante da sala, vamos falar sobre classe e racismo.
Mais do que qualquer ideologia política, religiosa, moral, que precisa de cânones e dogmas para se imergir na cultura e se naturalizar no comportamento, o liberalismo se insere quase como um elemento de inerência da humanidade, quase ainda como um espírito, porque nele não há, em tese, nada, é neutro, universal, racional e respeitoso e adaptável a toda e qualquer cultura.
Afinal, democracia é forma, se exime da decisão, não atua na vontade, mas sim no contrato, não atua na pessoa, mas sim no direito. Como não encontrar progresso nisso?
O problema que a forma em si é estética, há forma na forma vazia. Um bolo feito de farinha, ovo, leite e açúcar pode ser chamado de neutro, mas não é, ele precisa de uma fôrma (sic) do contrário deixa de ser bolo e passa a ser resto de massa espalhada no forno. Ou seja, padrão é o elemento central da ideologia liberal que tem em si uma máscara neutra.
Essa neutralidade cultural tira o foco dos sujeitos e coloca o foco na técnica, de forma que, no nosso insciente não precisa se preocupar com a cultura e com os elementos reais das distribuições sociais as quais a sociedade está ligada, porque o resultado que importa é o progresso, técnico.
O legado da humanidade não é a cultura, o pecado da humanidade não é o legado, mas o que resta a humanidade é aquilo que a humanidade usa e usará daqui pra frente, a tecnologia que transcende o modo de vida e locupleta a cultura.
Essa reflexão me veio fortemente no momento em que eu usava da técnica, fortificava minha cultura contemporânea assistindo minha TV de 50 polegadas, marco do meu progresso cultural, me deparando com o antigo seriado animado “os Jetsons”, que dispensa apresentações, mas em resumo se trata de uma família do futuro lidando com as tecnologias do porvir, que se opõe, diretamente a outra serie animada contemporânea dela, do mesmo estúdio, chamada “os Flintstones”, que também dispensa apresentações, mas em resumo se trata de uma família do passado lidando com as tecnologias do antigo, que se opõe diretamente a serie que eu assistia.
E me veio o impulso da reflexão – prática mal vista pelo entretenimento reprodutivo – em ter a interpretação mais comum sobre essas duas séries: apesar de se dividirem em séculos ou milênios de diferença no tempo os problemas das duas famílias são os mesmos, e como sempre somos iguais no íntimo.
Porém logo me muni da crítica e repensei, tristemente percebi que, de fato, estou inserido na cultura neutra do liberalismo, afinal, a interpretação mais óbvia aqui, de inicio deveria ser: duas famílias iguais? Sim porque representam um padrão, um padrão do sonho liberal ou seja, família branca de classe média, essa classe que foi criada no iluminismo, chamada de burguesia, que por algum motivo foi considerada única para a racionalidade.
Daí sim me veio a martelada de consciência: De fato, o tempo não importa, quando se está na forma, o que interessa é o progresso.
Porém fora do espectro da família tradicional burguesa a periferia é invisibilizada. E o porquê é óbvio, porque o progresso pouco importa fora do círculo da estética padrão, só é do progresso, ou seja, só desfruta da neutralidade da vida quem está na forma.
O progresso nunca importou para marcar as relações de classe fora da classe padrão. Ela somente alimenta o discurso neutro para se reafirmar em elementos de justificação que perpassam o tempo. Se outrora era um darwinismo social racista, agora é a meritocracia, de outra leitura, meras justificativas que reelegem o “neutro” como política.
Se o negro, indígena, asiático, “árabe”, eram problemas racionalizados explícitos em um passado recente, a dádiva neutra da meritocracia é a barreira do alcance para esses mesmos sujeitos, que sequer podem discutir o progresso. Progresso é neutro quanto o foco é aqueles que progridem com o progresso.
E como o ser humano não é cronologicamente progressivo – afinal o que somos hoje não é um resultado linear do ontem, não somos definidos por versões de hardware – é necessário se neutralizar para viver sob a égide do progresso.
Infelizmente (ou felizmente), percebo que esse não será o último texto sobre o progressismo, vou tentar intercalar sobre a égide do tempo, afinal, não quero ofender a dádiva do tempo linear do leitor.
Foto: Freepik
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