Quem dera fosse preguiça

Não fui iniciado na preguiça, somente a alcancei pelo cansaço, e o cansaço só alcancei pela ansiedade melancólica.

  • Sentado: sem nenhuma postura, sem nenhuma anatomia.

    Quatro livros na minha frente; dois monitores interligados; um “xerox” de um texto muito interessante; uma lata de refrigerante; uma caneta barata e uma cara; um caderninho charmoso aberto em uma pagina com uma tabela feita a mão com o título “tábua de contradições do trágico”.

    O lugar é precioso. Cadeira giratória boa e confortável, ar condicionado, silêncio e cores claras.

    Conquanto geograficamente seja balzaquiano, eu me sinto meio Peter Handke. Há um desconforto, talvez com o método, talvez com o corpo.

    Um peso na nuca é quase como se a pele estivesse se encolhendo, assim como os ombros que bombeiam mais sangue para os braços, já que é a única explicação para estarem tão pesados.

    Chego a me interessar pelo desenho irregular da minha coluna enquanto sentado – já que tem uma estética expiatória – nada regular; se colocada em contraponto com alguém anatomicamente posturado, ereto, em uma cadeira, tornaria este heroico, revelaria sua grandeza, santificaria o reto e transmutaria em retidão. Minha postura irregular seria a exceção que consagraria a grandeza daquele sujeito que se parece com um manual de segurança de avião.

    Nada é simétrico aqui, uma das pernas está jogada para frente, esticada, se revelando atrás da mesa, transpassando a barreira imposta pelo espaço de trabalho, perna transgressora, que invade, que foge dos limites impostos pelos muros, que não respeita o glorioso espaço aberto entre as madeiras compensadas, que em sua significação genealógica foi criada com um telos, que essa perna subversiva insiste em desrespeitar. Se em noventa graus estivesse, regulada pela flexibilidade do joelho, além de saudável, estaria perfeitamente dentro da segurança pensada, guardada pelo ambiente, na sombra sob a mesa.

    Já a outra perna, tímida, como um soldado covarde, bate em retirada, como se pudesse se esconder. Cão envergonhado. Obriga o joelho a se pender para a direita, para que possa se acomodar entre as garras em cruz do suporte da cadeira e suas rodinhas. Toda desnorteada e acuada, mal sabe que é tão subversiva quanto sua irmã, afinal, ao se prostrar para o lado oposto, também sai do olimpo protegido sob a mesa, e os pés da cadeira não foram feitos para abrigá-la. Ao ouvir isso, envergonhada, a outra perna se retrai junto a sua companheira sob a cadeira, e ali permanece, aproveitando o formigamento que essa mudança de posição causou.

    O tronco, supedâneo de um corpo em sacralização, por conta da irregularidade espinhal parece um amontoado de matéria, inclusive com algum incomodo na região do baço, que nem chega a chamar atenção, já que desconforto se tornou um verbo, sem tempo e sem espaço.

    Enfim, se chega no Deus, a cabeça, o alvo. Como pode algo tão poderoso estar sobrestado em uma estrutura tão irregular? Talvez por isso que esse meu Deus corpóreo seja, nesse contexto uma potestade descrente, mirando fixamente no nada, ainda que acelerado, estático mas em movimento frenético, acumulando pensamentos sobre coisas que nada tem a ver com o ambiente geograficamente determinado que a visão tem acesso.

    O grande “X” dessa estrutura desconfortável é o interior dessa deidade humanizada e humilhada, que não se decide, por total incapacidade de controle, de potência de poder, de total incolumidade de saber, de sentido parvo e de ignorância. Esse cérebro se acelera como em um jogo virtual, vai de um lado para o outro, de problemas, a angustias, ao simples incomodo de estar ali, naquele espaço e naquele tempo, sem produzir nada.

    Esse deus não é nem onisciente, nem onipresente.

    Os comandos regem o corpo, e a única coisa que fazem é levar a mão ao rosto e esfregar os olhos que insistem em fechar ou abaixar e levantar o pescoço sem destino algum. Fazendo sentir uma coceira no nariz, que chega do nada, como se uma pena invisível estivesse me provocando.

    Quando a decisão é tomada e faz o tronco jogar a cabeça em direção ao livro, já na quarta linha, ainda que esteja lendo – e é por isso que admiro tanto essa entidade cerebral – pensa em tudo menos naquilo. Incrível, as palavras são lidas, mas a racionalidade entende sobre um problema diverso e nada matemático. Talvez, me alegra um pouco, esse Deus seja um pouquinho onipresente, pelo menos pluripresente.

    Enfim, paro e reflito. Conservo a postura e sem mover o tronco aglomerado e empilhado; só movo o pescoço para que os olhos fixem no nada.

    Só um lamento grego forte é soado, apitando de dentro da cabeça para fora das orelhas e nariz, mas com a boca ainda fechada, que padece em predicado: ai de mim! Quem dera eu fosse preguiçoso!

    Se assim o fosse, pouco me importaria o corpo e sua forma, e nada me importaria o espaço, o tempo não seria calculado, e nenhum desconforto seria possível, eu estaria no nada, e no nada não há dimensão possível. Se eu fosse preguiçoso poderia contemplar, seja o que for, e a produção ou a rotina não seriam problemas, pois no momento preguiçoso elas não existiriam.

    Não sou preguiçoso, essa minha inação é melancolia, que não permite que eu seja algo que não meu espaço físico dentro de um relógio. Não fui iniciado na preguiça, somente a alcancei pelo cansaço, e o cansaço só alcancei pela ansiedade melancólica.

    Sem resolução, vejo por bem fechar o livro aberto, abrir outro e me deitar na cadeira, quem sabe dormir um pouco, e permitir que a melancolia seja meu Morfeu.

    Imagem: Freepik / Foto criada por @user18526052

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