A mais bela (Vestida em escarlate)

Queria ser como elas, ter um tempo para me recolher e outro para florir, sem ser criticada pelos olhares alheios.

  • E mais um dia eu acordo vestida, como sempre, de vermelho escarlate. Há uma semana chove sem parar e pareço me afogar nessas lágrimas do céu. O vento frio me sacode a cada lufada levando partes minhas embora.

    Desolação, desesperança? Não sei, mas me sinto fraca, como se o tempo parecesse me abalar, enquanto em volta tudo se encontra verde e florido.

    Perto de mim às onze horas novamente desabrocham. Queria ser como elas, ter um tempo para me recolher e outro para florir, sem ser criticada pelos olhares alheios.

    Coloco minha armadura porque se aproximam afoitos. Sou eu a culpada pelas feridas? Como um porco-espinho essa é minha defesa. Eles não culpam o porco-espinho de soltar suas agulhas em momentos de desespero. Não deveria ser cobrada a ser coisas tão opostas, frágil e resistente. Afável e dura. Ser humilde e ao mesmo tempo provar meu valor e lugar dentre os meus.

    Porém, não deixo de me sentir triste quando retiram de mim algo que me deu tanto trabalho de produzir. Dias e dias de dedicação e cuidados, para depois… outro usufruir. Ainda me dizem que eu deveria estar acostumada a isso, que vim ao mundo com esse intuito.

    Embelezar.

    As gotas do orvalho chegam até mim e escorrem. Quando essa chuva irá parar? Perto de mim as folhas acumuladas do outono fazem uma manta aos meus pés, e me sinto afundar nelas, como se eu pudesse sufocar. E me pergunto se o problema é comigo ou se todas passaram por isso? Se é minha cor que me atrapalha, se existe um pré-conceito a partir dela ou se é apenas minha natureza selvagem falando mais alto em meus instintos?

    Eu não sou um adorno, eu apenas… sou eu. Existo, junto com milhares iguais a mim, e ao mesmo tempo tão distintas umas das outras.

    As nuvens começam a se dissipar. Porém, a garoa continua. E algo que há muito tempo não presenciava: um arco-íris duplo, onde suas sete cores dividem o céu em igualdade, provando que todos desfragmentam da mesma luz das gotas de chuva. Se todo dia visse um arco-íris, ele deixaria de causar esse maravilhamento.

    Apenas agora, refletindo sobre isso, comecei a sentir falta do sol nas semanas de tempestade que me assolaram e, sim, aquele sol. O calor imprudente do verão que me queimou e me ressecou, agora me faz tanta falta. Aquele calor que aquecia minha alma, que sentia em minhas células e fazia tudo funcionar. Deixo as gotas escorrerem, enquanto concluo que às vezes a tempestade vem apenas para nos recordar que o sol pode ser impiedoso, mas nos dias de escuridão ele faz falta.

    Seja bela, mas não me sinto jovem. Desfaleço-me aos poucos enquanto minhas pétalas desmoronam escuras e ressequidas. Por quantas vezes julguei a mão do jardineiro que arrancava partes de mim? Deixe ir como eu um dia deixei. E mais uma vez aquelas mãos calejadas que bondosamente arrancavam as folhas secas. Por instinto um dos espinhos furou a mão enrugada daquele que por tantas vezes cuidou de mim, assoviando.

    Começo a pensar quantas rosas vieram e foram sem poder sentir a chuva, a tempestade. E como eu fui privilegiada em poder sentir falta do sol, aquele sol que muitas vezes pareceu prepotente e distante, mas que sou viva por causa dele.

    E que tantas rosas foram podadas antes de mim por mero capricho de amantes reafirmarem seus sentimentos. Por que somente as vermelhas sofrem? Ou será que as cor-de-rosa e a amarelas também se sentem mal e violadas?

    E aquela mão calejada todos os dias, sem falta, vinha até mim, me cuidando, me admirando como sou, só pelo fato de eu estar viva, sem nenhum momento pensar em me ceifar. Enquanto me despia de minhas últimas pétalas compreendi que viver ao lado daqueles que nos apreciam é ter sido feliz. O temporal me fez envergar, sempre demonstrou que eu tinha flexibilidade para passar e aguentar todo aquele infortúnio.

    Percebo agora que, como as outras cores, o vermelho é importante. O azul do céu, o cinza da tempestade, o branco das nuvens, o verde do gramado, o amarelado da luz do fim da tarde, o alaranjado do pôr do sol, e a infinidade das cores das outras flores.

    E que embelezar não é ruim quando, com sentimentos e sua essência, torna os dias obscuros das pessoas mais ensolarados. Você se torna luz, que preenche a escuridão tornando os dias mais suportáveis. Todos travam batalhas internas. E se você conseguir ser bom mesmo ferido ou quebrado, entendeu por que está aqui. E fez o mundo mais bonito. Você se torna o sol, a luz, que se fragmenta em diversas cores, e não apenas no vermelho-escarlate.

    Este conto foi escrito pela colunista do Literatura Post, Josi Guerreiro.

    Comentários estão fechados.