Série, que faz do correr na chuva um porto seguro, retrata com delicadeza ímpar uma jornada feita para as futuras gerações (que já são atuais).
À título de informação, eu começo exatamente esta parte em negrito aqui, ouvindo “red, orange, yellow, green, blue”, trecho de “Colours of You”, por Baby Queen, que é a música oficial do casal Nick e Charlie. E a propósito, caso queira experimentar um pouco do que escrevi aqui sentindo nos ouvidos o que eu senti, coloca o fone e toca a música. Vai ser legal.
Como todo ser humano que permeia o mundo da internet na atualidade, fui bombardeado, à partir de 22 de abril deste ano, por pequenas folhas de papel secas do outono, coloridas e que davam a volta e às vezes se transformavam em passarinhos em torno de alguns alunos de um colégio que separa os meninos das meninas: o azul Truham Boys School, e o vermelho Higgs Girls School. Heartstopper fez não só os colégios, mas até o Google se render à esses detalhes:
Outro aviso importante (o último, prometo): este texto é sobre o que ela causa, não sobre a série em si. Nada de erro de continuidade, fotografia e roteiro.
O começo da série não ser traumático já é um ponto. Charlie Spring, o menino mirrado e tímido chega ao colégio de volta das férias de um ano anterior onde, no mesmo colégio, soube-se que ele era gay com 14 anos. É evidente: o preconceito velado existe, mas não há cenas agressivas ou que despertem gatilhos em Charlie nesse retorno. Aqui, uma lição inclusive para o sistema educacional (mundial): a escola é um lugar acolhedor de ensinamento e aprendizado.
Esse frio na barriga, com um motivo, vinha da mensagem de Ben Hope, o “namorado” de Charlie, mas que adora se encontrar às escondidas. Publicamente? Sem chance. A rejeição na vida de uma pessoa LGBTQIAP+ retratada na prática. Não na vista da ótica de um garoto apenas ansioso, mas que já envolvido nesta rejeição.
Contudo, mesmo que Ben esconda o relacionamento com Charlie, a série mostra de forma muito honesta que essa é apenas uma parte, não o todo. O primeiro episódio vai ter um desfecho apenas no sétimo, com um professor de Artes carregando ao lado esquerdo do peito um broche com a bandeira LGBT – assim como eu tenho tatuado na mesma altura as 8 cores da bandeira.
A série não começa, aborda ou é pautada no desejo pelo corpo, mas pelo afeto. Não há sexualização desenfreada como forma de suprir o afeto que falta: é exatamente o contrário. Não há culpa por sentir, nem pelo sentido que se dá ao carinho. Só acontece.
E acontece pois ele estava lá: Nicholas Nelson, o Nick, era a dupla do segundo ano do ensino médio, agora mesclados entre si, de Charlie. Nem Nick, nem Charlie sabiam disso: Nick era só o garoto do rúgbi que Charlie conhecia de vista, e agora estudam juntos em determinados períodos. “Hi”, que se repete diversas vezes entre os dois, carrega o peso maior que de um rocha de afeto e carinho mútuo.
Há um ponto extremamente importante na série: ela não é uma série de amor adolescente. Ela é uma série de amor, que acontece na fase da adolescência. E o que faz essa condição é que, como história, ela vai beneficiar adolescentes a entenderem que amar é comum e normal. Mas como ferramenta, ela vai servir como uma entrega de conteúdo para que pessoas de todas as idades (incluindo, especialmente, os pais) possam entender, de maneira prática, vendo pra crer, como é ser um adolescente gay e melhorar a forma de lidar com isso. Afinal, amor não é “coisa de adolescente”, e entender que essa fase da nossa vida precisa ser encarada com seriedade é o que Heartstopper faz de melhor.
Representatividade e reconhecimento: Tara, uma adolescente preta, e Elle, outra adolescente preta e trans, reconhecendo-se não só pela própria raça, mas dentro dessa comunidade de apoio que une a letra T e a L em LGBTQIAP+, construindo pontes, não muros.
Um outro ponto que, de maneira completamente necessária, chama a atenção é a relação do pai de Charlie com o próprio – até porque vamos conhecer o pai do Nick só à partir da segunda temporada (confirmada, ainda bem, junto da terceira): o pai respeita. Na real, é respeito. É uma fortaleza necessária quando, por duas vezes, busca o filho compreensivamente, perguntando se “está tudo bem” e respeitando quando não estava: apenas abraçando o filho. Bem parecido com a delicadeza que a mãe de Elio, em Me Chame Pelo Seu Nome, tem quando busca-o na estação de trem depois dele se despedir do amor veraneio.
E Elle com Tao, hein? Quem ousaria tentar definir aquilo que é basicamente o amor? Elle é trans. Tao, um menino… hétero? Panssexual? A gente precisa saber? Ele gosta da Elle, correto? É isso que o orienta. Quem falou em caixas?
Tudo é muito bem amarrado: como produto, a série atinge em tiro de canhão um novo colegiado de adolescentes que conversam pela DM do Instagram e hoje, na era da informação compartilhada, pesquisam e encontram respostas sobre ser bissexual no Google. 20 – e olha que estou sendo justo aqui – anos atrás, pensar nessa possibilidade era inviável. 20 anos.
“Nick, isso quer dizer que nós somos namorados?” Isso, Charlie. Você descobriu. E olha só que interessante: você descobriu e inclusive ajuda outras pessoas a se descobrirem. E olha que foi a Jessie J que falou diretamente pra você, num show dela, hein?
E, como bem disse meu amado amigo Christian – que, por sinal, foi quem sentou comigo e colocou a série para tocar, estando nós em Balneário Camboriú, praia onde mora, Heartstopper mostra e renova a esperança de que dá para viver um amor daquele. Não daquele jeito: na Inglaterra, em uma escola do ensino médio, com um quarto todo Pinterest. Mas um amor daquele: de verdade.
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